Saturday, September 30, 2006

Caricaturas Crónicas 8

O QUE A CARNE VALE
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

«Foi o tumulto de Carnaval... gosto e apetite depravado,
intemperanças de gula, enfim carne.»
Pe. António Vieira in «Sermões»


Por debaixo da máscara está a carne, matéria em putrefacção que o tempo vai destruindo, até ficar em nada. Nada morre, tudo se transforma, e antes que chegue o tempo da ressurreição ao terceiro dia, existem três dias «gordos» de gula, antecedendo a marca da cinza: «Lembra-te homem que és pó, e em pó te hás-de tornar.»
Por debaixo da máscara da riqueza está o Zé e a Maria Povinho, matéria em degradação que os impostos vão destruindo, até ficar no osso, que a carne está cara. Nada morre, alguns viram a casaca, e antes que chegue o tempo da revolta geral, o político faz eleições, renascendo, tal «phaenix», das cinzas governamentais: «- Ó Zé não me conheces?» - pergunta a máscara política - «Conheço-te como os meus dedos! És o mesmo do ano passado, mas com outra caraça... No mais não fazes diferença: a mesma capa, o mesmo palavreado, e as mesmas contribuições.» (R.B.P. in «Pontos nos ii» a 4/3/1886).
A máscara é a arma do político, e com ela dá liberdade de fantasia ao interlocutor, com ela metamorfoseia-se no que os outros gostariam de ver, finge do que gostaria de parecer. A máscara é o Carnaval, é o «Xexé», é «Salsa», é a política disfarçada em vida.
Tal como o ciclo anual, quando a vida parece morrer, na falta de esperança, quando os frios invernais crispam a máscara no gelo, chegam as campanhas eleitorais, chega o Entrudo, a festa da carne. Já não há «carneiro com batatas», e a carne no «churrasco» é outra: «Ora vejam vocês, rapazes como os tempos mudam!... D'antes, quando havia fé e religião no mundo, era o Povo que queimava os Judas... Hoje, são os Judas que queimam o Povo». (Nogueira, in «Os Pontos», a 2/4/1899).
A Festa é a tradição do «apetite depravado», da «intemperança da gula», é a barriga na procura do «cozido à portuguesa», o qual tem mais batata e couves para uns do que para outros. Mas é também a liberdade em fingimento, é o cair das máscaras da conveniência na qual nos vamos escondendo de nós próprios, como ilusão de enganar os outros, e enganados andámos todos nós.
O Carnaval, como valor de carne gorda, já que a carne limpa de vaca está muito cara, é o mascarado que se desmascara a si próprio, sem necessidade do espelho mágico do caricaturista.
Três dias de Entrudo, dias de exorcismo, três «gordos dias» na tentativa de esquecer a gordura da carne mais barata, ou a «ténia» na «porca da política». Se o Entrudo é o triunfo da carne, porque não tem IVA, e a Quaresma o tempo da abstinência, dos serviços prestados com IVA, o Portugal é a abstinência perpétua para o Zé, e a carne eterna do político.
Dias de folia personificados por um ser folgazão e glutão, capaz de todos os excessos e tropelias, como triunfo libertador. O Carnaval e a sua orgia é a irreverência contra a normalidade, é uma pequena explosão dentro de todo um ano em que o Zé e a Maria são bisnagados, bailados... numa eterna mascarada. Pois, quando crêem que finalmente podem retribuir os ovos podres, cai-lhes a «Quaresma em cima! Pecados por a boca fora, (...) (neste espaço estava escrito bacalhau) ...pela boca dentro, procissões, cera gasta, mirra, sermões, fatinho preto... e está-se no céu!» (Almeida e Silva, in «Charivari», a <18/2/1888).

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