Friday, December 28, 2007

Is'raelidades - Humor Gráfico Israelita 1938-1993

Perante a noticia da criação do Museu do Humor Politico em israel, lembrei-me que talvez eu tenha ajudado em algo. Em 1993, em parceria com a Embaixada de israel em Lisboa desafiamos os cartoonistas israelitas a exporem trabalhos seus em Portugal. Acabamos por fazer uma exposição retrospectiva. Segundo disseram na altura era a primeira vez que se fazia esta historia do Humor Gráfico israelita em Exposição.
A Câmara Municipal de Lisboa apoiou logo a iniciativa e ela concretizou-se no Museu Raphael Bordallo Pinheiro em Lisboa.
Aqui mostro a capa do Catálogo, a imagem de apresentação feita pelo Presidente da associação dos Cartoonistas de israel e o meu texto de apresentação:
Humores e sacralidades
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Quando surgiu a ideia da realização de uma exposição sobre o humor israelita contemporâneo, das conversas com Daniel Zohar (Adido Cultural da Embaixada de Israel em Lisboa), de imediato se me colocaram dois pontos para o desenvolvimento do projecto.
O primeiro seria a hipótese de complementar a mostra, com uma introdução histórica, um caminho para melhor compreensão do desenvolvimento do humor neste jovem país. Conseguiu-se, graças ao empenho de Dan Pattir.
O segundo está ligado a uma divagação filosófico-humorístico, e portanto mais difícil. O curto prazo de tempo disponível, não permitiu encontrar um estudioso conceituado, que desenvolvesse apropriadamente o assunto. Por essa razão, e por ser algo que só a mim se colocou, aventurei-me a deambular sobre a questão: sendo Israel a terra prometida, a terra escolhida por Deus, cujos mandamentos fizeram surgir as três grandes religiões monoteístas do mundo ocidental - Judaica, Cristã e Islâmica; sendo terra santa para três vertentes de religiosidade, num país fundado num âmbito religioso, creio ser pertinente colocar a questão sobre o relaciona¬mento entre o humor (que existe e está patente nesta exposição) e o espírito religioso que rege este povo.
A dúvida, perante a minha formação cristã, é se o riso/humor é divino, ou satânico. Se é uma fórmula para triunfo do mal, ou se é uma parcela importante da inteligência dada por Deus ao Homem, criado à sua imagem e semelhança. Será o humor essa consciência, o poder sobre a terra pela razão e espírito superior que só Ele possui?
Um mundo sem humor, é um mundo negro de terror, de ditadura castradora da inteligência criativa, humana e portanto divina. Negro era o universo, quando Deus resolveu criar o Mundo. Será, que ao fazê-lo, lhe terá dado tal satisfação, que do seu coração brotou um trovão de gargalhada, rasgando os céus, e se fez luz? O humor é desde então uma luz nas trevas, uma luz no meio da vida quotidiana
A primeira ironia no Mundo, surgiu quando Deus, depois de criar o Céu e a Terra, todos os animais e plantas, plantou no meio do Éden uma árvore «virótica», infectada pela inveja, intriga, vergonha ... com todas as maldades do mundo, «Viu tudo o que fizera, e eis que estava muito bom» (Génesis).
Caim depressa aprendeu as artes da ironia, dando um precedente ao velho hábito judeu de responder a uma pergunta com outra pergunta: - «Onde está teu irmão Abel? - Acaso sou eu o guarda de meu irmão?»
Naturalmente estas improvisações não têm fundamen¬to científico, e são feitas com todo o respeito pelas sagradas escrituras, onde na realidade encontrei a definição real do Humor/ riso, que imperará durante séculos. Encontra-se na história de Abraão, Sara e Isaac.
Deus, após ter escolhido Abraão como Patriarca do seu povo, e pela impossibilidade de sua esposa dar filhos, quando estes tinham respectivamente cem e noventa anos, anuncia-lhe que terão um filho. Sara cai por terra a rir-se, incrédula, pois estava numa idade muito avançada para poder ter filhos. A rir-se retorquiu que se contasse aos outros que iria ter um filho, rir-se-iam dela. Então Deus ordenou a Abraão que este filho chamar-se-ia Isaac.
Noutra língua, esta história perde grande parte do seu conteúdo, já que a sua riqueza está num jogo de palavras que nunca é traduzido. Isaac em hebraico pertence ao verbo «Lyitzhak», rir, e como Sara se riu da ideia da velhice poder gerar um novo ser, Deus ordenou que este filho teria como nome de aquele que «Rir-se-á» (Yitzhak), da incredulidade, da velhice, da morte.
O pensamento humorístico, compreende em si a vida (de uma nova ideia), perante a velhice, a morte de um conceito, de um pensamento. A caducidade, a velhice de um facto, de uma ideia criticável é salva pelo riso regenerador, criativo, libertador. Durante toda a Antiguidade, e Idade Média, o realismo grotesco era considerado como o elemento regularizador, porque uma sociedade sem transgressão (calculada), é uma panela pronta a explodir. Assim o humor desde logo surge como essa força libertadora que da velhice refaz uma linha de sobrevivência de um povo; regenera a esperança de sobrevivência dos oprimidos; repõe a falibilidade dos poderosos ...
Através desta passagem nas sagradas escrituras, Deus dá ao seu povo um conceito fundamental da inteligência humana, rir-se da incredulidade perante o poder de Deus; rir-se de si mesmo para vencer a caducidade, a velhice, o passado, para renascer, vencer o futuro. Deu -lhe como que uma segunda oportunidade de sobrevivência, após o Homem a ter deixado no Éden.
Todas as Sagradas Escrituras Judaicas estão repletas de humor, através de jogos de palavras, de provérbios, parábolas, como ridicularização do vício e insensatez, como pedagogia, como lógica filosófica para compreensão entre o sagrado e o mundano.
Como diz um provérbio judaico - «ri dos teus próprios problemas, e nunca te faltará do que rir». Mas, também há aqueles que preferem glorificar Deus: «Quão sábios são os teus mandamentos. Senhor! Cada um deles se aplica a alguma pessoa que conheço.» Ou aqueles que se auto-glorificam: «- Como? Deus fez o Mundo inteiro em seis dias, e você demorou quatro semanas para fazer uma calça? - Tem razão, mas dê uma vista de olhos no Mundo, e depois dê uma olhadela nesta calça ... »
O Talmud (uma colecção de preceitos, comentários e narrativas) usa como «arma» o humor, porque como diz o estudioso Renato Mezan «O raciocínio talmúdico, frequentemen¬te sagaz e intrincado, contribui decisivamente para converter a mente do judeu num instrumento aguçado, capaz de sair airoso das situações mais difíceis. A analogia e a inferência, processos característicos da subtil dialéctica talmúdica guardam certa semelhança com uma condensação e ou deslocamento que, segundo Freud, constituem os mecanismos básicos da construção inconsciente. Recordemos que Freud sustenta que o humor, à semelhança dos sonhos e das neuroses, tem origem nestes mecanismos, considerando-os defesas do psiquismo contra tudo que lhes causa temor. A forma tradicional de pensar recebe, assim, novo conteúdo, demonstrando ser adequado para concretizar os objectivos da crítica humorística. Talvez boa parte da profundi¬dade, agudeza e ironia pertinentes ao humor judaico, provenham da capacidade adquirida pelos judeus através dos séculos no estudo do Talmud, no sentido de encontrar relações entre os factos e situações mais dispares. Tal procedimento oferece o efeito de surpresa essencial ao desenlace humorístico.»
O raciocínio Talmúdico é analítico-dedutivo (o Pilpud), usando a lógica como arte de oratória, como arte de demonstrar a razão, mesmo que esta pareça inverosímil.
Os Rabis, nos seus sermões utilizam também textos do Midrash (parábolas, por vezes com raciocínio humorístico), com o objectivo de tornar mais claro o sentido de uma passagem das escrituras, ou de algum preceito.
Como exemplo, leram-me esta história (escrita por volta do século IV), e que eu transcrevo por palavras minhas: estava um grupo de judeus reunidos com um Rabi, conversando sobre a questão da pureza nas coisas (elemento importante na religião judaica). Partiam do princípio de que a matéria-prima era pura, mas o utensílio, esse sim poderia receber impurezas no seu fabrico, como por exemplo a palha é pura, mas ao fazer-se um cesto com ela pode-se introduzir-lhe impurezas, e este seria então impuro. Um dos presentes pôs então a questão: «o que acontece se um elefante comer palha, e quando fizer as fezes sair um cesto. Este cesto é impuro?», O «impertinente» foi posto na rua. A questão da história narrada hoje, não continua a dialéctica da impureza, mas saber até que ponto está correcta a expulsão do indivíduo, ou até que ponto a irreverência do indivíduo pode ser encarada como uma intervenção jocosa, só para fazer piada, e então tem razão a expulsão; ou se ele queria saber mesmo o que o Rabi pensava do assunto, usando uma fórmula humorística, para ser mais directo ao raciocínio
O judaísmo defende o humor como disciplina pedagógica, onde a irreverência joga como balanço entre o respeito devido e intransigente às coisas, e a liberdade de inteligência, de criatividade, para cada um saber resolver a vida dentro das normas. A alegria deve sobreviver a tudo, apesar do pensamento nunca se distanciar totalmente da lembrança que o Templo foi destruído, e ainda não reconstruído («Na maior das minhas alegrias, lembrarei Jerusalém»). O humor deve conter em si o contraponto da mágoa. Só a alegria nos dá conhecimento da dor, e a dor o conhecimento da alegria. Deve-se desenvolver a arte do humor e da irreverência, sem nunca se esquecer o respeito que se deve ter a essa alegria, a essa dor.
A alegria chega a ser uma norma judaica, prescrita em festejos religiosos, onde esta é mesmo imposta. Houve em tempos idos uma celebração que tinha inclusive o nome de «Festa da Alegria», e da qual nasceu um ditado: «quem não viu a alegria na Festa, não sabe o que é a alegria».
Outra comemoração ligada ao humor e alegria, e que ainda hoje é celebrada, é o Purim. Realiza-se para comemorar o Decreto de Amã, o qual libertou o povo judaico do jugo Persa. Isto aconteceu graças a Esther e Mardoqueu, ficando Mardoqueu a simbolizar o bem, e Amã o mal. Pois deve-se comemorar esta festa na alegria total, ajudado com as bebidas alcoólicas, até ao ponto de já não se conseguir destrinçar entre o bendito Mardoqueu, e o maldito Amã. Nesta festa utilizam-se também as máscaras, e demais jogos humorísticos de convívio social, e de reinversão dos valores do Mundo.
A Festa, é um dos elementos fundamentais de todas as religiões ditas primitivas, e o judaísmo pode-se incorporar em parte neste âmbito. A sua base não surge como ruptura intelectual ou de revelação, mas como desenvolvimento evolutivo e natural do monoteísmo. Este Deus criado à sua imagem e semelhança, tanto sabe rir como castigar. A religião judaica desenvolveu-se numa estrutura aberta de diálogo com a evolução histórica, encerrada contudo numa estrutura de regras divinas, ou seja, irreverente mas respeitosa às regras impostas.
Não foi uma religião que se impôs, mas que germinou, e por isso sempre se pode rir de si própria. Esta talvez a grande diferença com as outras duas religiões monoteístas que nasceram neste médio oriente, tendo por base a história judaica, mas querendo se impor como uma nova revelação divina.
Assim, continuamos a encontrar o sistema humorístico na raiz do Cristianismo, porque Jesus, como judeu que era, usa as velhas fórmulas dos profetas e rabis - a metáfora e a parábola com componentes humorísticas: «É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus» (um exemplo entre outros).
Os evangelistas, quando descrevem a vida de Jesus, fundamentam-se em preposições metafóricas, como a reversão do Mundo, um dos elementos característicos do realismo grotesco, que imperou como humor até à Idade Média. Como exemplo, ver um menino a ensinar os adultos (Jesus no templo a ensinar os Doutores), fazer metáforas de reinversão («os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros»), ou deformar os valores de glória e humilhação, em que Jesus como Cristo, Salvador e Rei alcança a glória o triunfo para todos nós através da humilhação, escárnio, flagelação, crucificação como um bandido.
O Cristianismo usa então os contrários, não como um contra poder político, mas numa fórmula de fazer-valer a mensagem, de se sobrepor aos poderes de então. Mais tarde usará também este jogo de contrários, como metáfora de contra poder espiritual, e face a Deus estará o diabo, assim como para o poder face ao rei estará o bobo, e face aos políticos estarão os cartoonistas (7). Esta fórmula de irreverência e humor é uma regra regularizadora da sociedade para que esta tenha consciência de até onde vai a ordem e o interdito. Em judaísmo, até onde pode ir a irreverência e o respeito.
Como já referi, a Festa é uma estrutura comum a todas as religiões de índole natural, com estruturas simplistas e de raiz primitiva. O Cristianismo, surgindo como reformulação de um pensamento religioso, e desenvolvendo-se na base da pregação, da conquista de um espaço espiritual e geográfico, é de índole colonizadora. Onde se instalava procurava fazer desaparecer as estruturas religiosas aí existentes, cristianizando-as ou perseguin¬do-as. Dessa forma, desde muito cedo procura combater a Festa, a alegria, o humor. Assim, encontramos em Tertuliano, Cipriano, São João Crisóstomo ... pregadores de um cristianismo distante do riso, já que este é um elemento satânico. O cristão fundamenta a sua religiosidade no arrependimento, na dor para expiar os pecados.
Combate com muitos séculos de existência, o Cristianismo quer castrar a ideia humana de festa, de humor, de irreverência, sem nunca o conseguir, pois desde sempre a festa popular se soube sobrepor ao poder ditatorial e dogmático dos Senhores da Igreja.
Com a explosão do espírito reformista, esta questão extrema-se, levando os católicos a uma inquisição destruidora do espírito humano, e os reformistas a explorarem o humor como uma arma. O nascimento da caricatura gráfica moderna dá-se na guerra informativa e panfletária que os Reformistas desenvolveram contra Roma.
O cristianismo, apesar de ter podido desenvolver o humor como uma das suas armas de inteligência evangelizadora, preferiu as armas das espadas, das ameaças infernais, da tortura para calar os discordantes, em nome de Deus. O poder cristão viveu sob suspeição.
O humor subsistiu socialmente como uma necessidade humana, que ninguém pode calar, talvez por ser divina.
O Islão, apesar de ter utilizado o passado histórico judaico, de imediato se demarca das fórmulas humorísticas de explanação da mensagem. Por um lado, porque a língua árabe de então era ainda muito pobre de léxico, estava na fase de transformação para a escrita, não dando grandes possibilidades ao desenvolvimento de metáforas, alegorias ... Por outro, desde muito cedo o Islão tornou¬-se numa sequência de regras de vida e de guerra santa, de conquista de um espaço, tendo como dinamizador o poder temporal de Califas. O Islão triunfa na exegese da revelação realizada pelo próprio Profeta, e pelo Dogma, o uso ancestral que impede a irreverência, o humor. Por exemplo, na surata LXXX está escrito: « ... ai ver-se-á faces brilhantes, rindo e alegres, I .. '; são os infiéis.»
Por outro lado, é curioso também que o Islão ao ir procurar a sua raiz em Abraão, não o faz através de Isaac (aquele que Rir-se-á), o filho natural, mas em Ismael filho de uma escrava. Pode-se ler aqui uma metáfora da sua posição face ao Humor?
Naturalmente isto não quer dizer que o árabe não tenha humor, pois o que aqui escrevi limita-se apenas a uma leitura dos textos sagrados. Como em todas as filosofias políticas e religiosas há sempre aqueles fundamentalistas que levam as regras à bestialização dos comportamentos, e aqueles que liberalmente adaptam as ideias à vida.
Voltando ao povo judeu, este na sua diáspora desenvolveu o humor como uma arma de sobrevivência, rindo-se dos seus problemas. Indefeso perante a violência, respalda-se na sua superioridade de espírito, auto-consolando ao seu ego na afirmação de um direito à vida. O humor é uma auto-psicanálise contínua, razão pela qual a sua história de humor se pode descrever como do «Éden até ao Divã».
Interdita a figuração na religião judaica, este humor sempre foi oral, ou escrito. Desenvolvendo-se mais ou menos livremente, consoante as condições de violência, a Europa de leste, através da língua Idiche (misto de hebraico e alemão) será o maior centro de desenvolvimento do humor judaico até ao nosso século. Hoje, esse centro situa-se nos EUA onde 80% dos comediantes são judeus.
Tanto o judaísmo, como o Islão não permitem representações de animais e outros seres, como defesa contra as tendências da idolatria. Por seu lado, o cristianismo desde muito cedo desenvolveu a iconografia como utensílio religioso, seja na adoração de homens ditos «bons», como os santos, ligados a uma estética do belo; seja na exemplificação dos seres ditos «malditos», ligados estes a uma ideia de grotesco, de caricatural. Desenvolvem mesmo a caricatura histórica ao deformarem Jesus, transformando-o em ariano de cabelos louros e olhos azuis, e exagerando os traços judeus de Judas e outros «ímpios».
O triunfo do ocidentalismo de índole cristão no mundo, com a sua estrutura política, ligada à força de comunicação social, fez com que o humor gráfico se desenvolvesse em todo o planeta, e triunfasse como a arte da contemporaneidade.
Por essa razão, ao longo deste século encontramos a evolução de humor gráfico judaico (não muito diferente do humor universal), inclusive na Palestina e posteriormente Israel. Naturalmente também aqui se desenvolveu algum humor árabe. Esta exposição é a mostra dessa evolução, e ponto de situação da actualidade em Israel, onde se inclui o único humorista árabe a trabalhar na imprensa Judaica.
O desenvolvimento deste género humorístico deu-se no âmbito judaico, e contra ele. O estudioso Elon lamenta-se: «O tradicional humor judaico - com sua incisiva auto-ironia ¬desapareceu entre os Israelitas. Seu âmbito restringe-se agora a: governo e política.» Só que este é um mal generalizado, num mundo em crise ideológica, em crise cultural, onde a política se sobrepõe a tudo.
Desculpem-me esta ousadia, de ter divagado superfluamente por assunto tão sério. Queria entretanto agradecer ao Dr. Paulo Pereira / Câmara Municipal de Lisboa ter aceite esta nossa proposta de exposição. Agradecer a colaboração do Rabi Cohen, de Ana Araújo e demais pessoas que tornaram possível este evento.
Para terminar deixo a palavra ao pai de Israel, David Ben-Gurion com um exemplo de humor Israelita, e outro exemplo de humor judaico que prossegue a sua existência no resto do Mundo:
«Em Israel, para se ser realista, é preciso acreditar em milagres.» Um pai de família judeu, vira-se para a família, e promete - «Se tudo correr bem, vamos visitar Israel. Mas, se as coisas correrem mal, vamos viver para Israel.»

Museu de Sátira Politica em Israel - Holon

Para finalizar o Ano humorístico, nada como saber que algumas entidades oficiais levam o humor a sério.
A existência de Museus do Humor no Mundo é muito reduzida (cerca de uma dezena), visto haver um grande medo sobre esta arte. Assim temos o prazer de comunicar que na semana que antecedeu o natal, nasceu em Israel um novo Museu do Humor, dedicado à Caricatura e Sátira Política. Esta sedeado na cidade de Holon, e apresenta o essencial da Historia do Humor Gráfico neste meio século de existência como Estado.
O seu objectivo é não só rever o passado, como dar alento ao aparecimento de novos cartoonistas, organizando-lhes exposições, principalmente dos estudantes da Escola Shenkar de Holón.
Para os veteranos foi criado um Prémio Anual, o Lápis de Ouro que será outorgado como Prémio por Carreira

A História do Humor nos Paises Iberoamericamos

Este ano fui presenteado com os livros da História do Humor em Cuba (nº7), Uruguai (nº6), Brasil (nº5) e Venezuela (nº4),que são editados pela Milénio (Barcelona) em co-edição com a Fundação Universidade de Alcalá de Henares, sob direcção do Ermengol. Apesar dos referentes á Venezuela e Brasil já terem dois anos, so agora os recebi. Para quem gosta do humor e da história são magnificos livros, que se podem adquiri por encomenda para: editorial.milenio@cambrescat.es

Saturday, December 22, 2007

HISTÓRIA DA CARICATURA EM PORTUGAL (parte 9)

NOGUEIRA DA SILVA – II
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Voltando a Nogueira da Silva. Em 1856, ou seja quase no início da carreira, o “Jornal Para Rir” (nº13 de 7/8/1856, pág. 1), de que era director, biografo-o desta forma, sob a assinatura de L. (Francisco Fernandes Lopes ?).: «As suas tendências artísticas principiaram a manifestar-se desde tenra idade. È verdade que todas as crianças mostram mais ou menos inclinação para as artes plásticas, mas o espirito, o epygramatico, a subtileza satyrica, é um condão especial, que de longe em longe apparece. E uma das duas, ou a monotona disposição destas conveniencias sociaes abafa aquelle que viera a este mundo para ser excepcional, ou a indole nascente encontra o verdadeiro caminho por onde voam mui desaffrontados, para orgulho dos seus um Gavarni, um Cham, um Grandeville.»
«O fundador deste jornal (N.S.) deve a si, aos seus esforços e á sua perseverânça, a reputação que já hoje ninguem lhe nega. E entre-parenthesis se diga, que nem elle a estas horas suspeita o que aqui se está escrevendo a seu respeito, nem, se o advinhasse, permitiria que o fizessem. È modesto, como o verdadeiro talento.»
«Quem o fosse procurar, encontral-o-hia no trabalho, e no estudo. Estudo sim, porque a caricatura, apezar de parecer uma coisa de si frivola e sem consequência, não é senão o resultado da observação das mais positivas phases da sociedade.»
«Rien n’est beau que le vrai.»
«E a caricatura, é a verdade. A Venus de Praxitelles, o Apollo de Belvedere, são ideaes, mas segundo a thoria de Boiteau, não são o bello, porque não são a verdade. A natureza tem mais harmonias que as que Saint-Pierre lhe encontrou, mas é no seu complexo. Cada figura deste interminavel drama, em que vae cada um tomando o seu papel, para o representar como Deus o ajuda, que a grande numero não é lá muito, cada figura, cada personagem desacompanhada, é uma individualidade positiva, e como tal ridicula.»
«Que preferimos !! Um paradoxo ?… Não, nunca houve tamanha verdade, como esta.»
«Il n’y a pas de héros pour son valet de chambre.»
«É assim; o heroe apeado do pedestal, deixa de ser heroe. Cicero com os seus amigos, não era o principe dos oradores; Napoleão como simples mortal. Havia de ter muito de mortal, e talvez de simples uma vez por outra. Os Lusiadas, sem a consagração do tempo, sem a acnonização da estatuária, sem a apotheose do poema, eram, (e não se offenda a nossa gloria nacional) eram uns ousados aventureiros, cada um com o seu traço mais ou menos pronunciado, cada um com a sua phisionomia mais ou menos aproveitavel para o lapis do nosso chistoso gravador, se os podesse observar com os mesmos olhos com que o bom do Gil Vicente caricaturava na scena, os cortezãos del-rei D. Manuel.?
«Frei Paço, por exemplo, o clerigo da Beira, e tantos outros typos creados pelo creador do theatro portuguez, não eram verdadeiras charges daquillo mesmo que Luiz de Camões, foi depois solidificar no marmore da epopêa ?»
«Se alguns collaboradores do Cancioneiro de Garcia de Resende disposessem do buril em vez da penna, não teriam feito um grande volume do Jornal para Rir d’aquella epoca ?»
«Os arrenegos de Gregorio Affonso, não contem em si mais verdade histórica, que muitas arrobas de chronicas do tempo ?»
«António Ribeiro o Chiado, com os seus avisos e com aquella bossa humouristica que se revela nos fragmentos que d’elle nos ficaram, não seria hoje um digno physiologista do Chiado, do mysterioso Chiado, com o seu Marrare, com as suas peripécias, com as suas modas, com os seus elegantes, com todas as suas caprichosas mutações, com tudo que elle não podia conhecer, quando lá morava no século XVI ?»
«A heroicidade, o bello ideal, o sentimentalismo, o septimo ceu da imaginação, são formosos artificios que se geram na mente do poeta ou do esculptor.»
«Mr. Daguerre foi o fiat lux das artes plásticas. Pediu ao sol o que os sonhadores nunca lhe souberam pedir.»
«A caricatura, é o deguerreotypo, com esta única differença, que lá, é a maquina quem se encarrega do retrato; aqui, são as reminiscências do artista, quem vem photographar como buril as mais salientes feições da sociedade com quem convivemos.»
«Nogueira da Silva tem um futuro. Introduziu nesta terra um género em que os paízes de mais sociabilidade estãp primando; mas está-o aclimatando, sem copiar servilmente pensamentos alheios. Tem invenção e inventa, com a grande vantagem de que o campo que explora não estava devassado. E que sáfara que não se lhe apresenta ao lápis ? O ridículo, o ridículo em Portugal é mina tão rica de inspirações, como o são de oiro as mais ricas da Australia. A arte é que neste paíz o não é, nem mesmo de cobre, para quem quer que seja.»
«E que se lhe importa o nosso Grandeville portuguêz com as suas promessas, ou com os seus desenganos ? O artista não sabe fazer orçamentos. Em quano não há deficcit, gasta. Em o havendo, trabalha. Assim se explicam muitas intermittencias, que o vulgo attribue a priguiça. Priguiça, é pecado vedado para o artista. Não trabalhar, é o repouso, é a transição para outra concepção, é uma necessidade, como qualquer outra. E se fora priguiça, que diriamos do fabuloso intervallo que mediou entre os espirituosos croquis e pochades com que Nogueira da Silva se estreou no Almanak da revista Popular para 1851 e na Semana, de saudosa memoria, até ao epílogo da paz com que em maio de 1856 abriu a primeira série desta folha ?»
«O genero que cultiva já não morre aqui. Era indispensável a sua cultura, com o é a telegraphia electrica, como o são os caminhos de ferro, como o é muita cousa de que agora nos não lembramos e outras muitas que estão ainda por inventar.»
O mais interessante deste texto são as definições de humor e caricatura, já diferentes da do Patriota, poucos anos antes, e onde se põe em paralelo os avanços técnicos da reprodução da imagem, ou seja a fotografia/deguerreotypo. Não nos esqueçamos que as primeiras fotografias nascerem nas mãos de caricaturistas franceses, e que Raphael Bordalo Pinheiro será dos primeiros em Portugal a ter uma dessas máquinas…
Em 1885 um seu discípulo, Caetano Alberto (que em 1874 já tinha feito um primeiro esboço no Diário Illustrado nº555 de Março), apresenta uma biografia subjectiva sobre todo o percurso de Nogueira da Silva. Dessa forma ficamos a saber que « por 1853 ou 54, Nogueira da Silva tinha abandonado o curso de marinha, que encetára de má vontade, e unicamente por obediência aos desejos paternaes; sentia-se melhor com os seus lápis e com os seus pinceis de aguarella e de miniaturas; já tinha experimentado os buris na officina de lavrantes do Arsenal do Exército, para onde entrára aos 12 anos; lembrava-se com saudade dos gessos que copiára na Aacdemia de Bellas Artes de Lisboa que frequentára por algum tempo; e n’este meio em que se julgava feliz, com aquella coragem e abnegação que acompanha os artistas de raça através de todas as contrariedades e privações, porque ellas as tinha, abandonado da protecção paterna, por não ter seguido a carreira da marinha, Nogueira da Silva procurava onde empregar a sua actividade artística sem encontrar remuneração para ella.»
«/…/ Os trabalhos de desenho não tinham cotação no mercado. As miniaturas eram monopólio do Santa Barbara, e Nogueira da Silva raras fazia. Lembrou-se de traduzir um romance e de o distribuir impresso, ás folhas de 16 páginas a 40 reis cada uma - esta ideia n’aquelle tempo era perfeitamente original - mas isso pouco deu, ninguem queria lêr e a obra não se concluiu.»
«Deparou-se-lhe um outro meio inesperado, que principiou por o cegar e depois por lhe dar alguns pintos a ganhar.»
«Nogueira da Silva teve uma horrivel doença de olhos, em que esgotou todo os recursos da medicina escholástica e caseira. Tentou então curar-se com a medicina de Respail.»
«Comprou um manual, leu com grande difficuldade algumas páginas e encontrou remédio para a sua doença, aquelle livro ficou sendo para elle um thesouro; restituira-lha a sua preciosa vista, e as suas páginas eram paginas de ouro que dia a dia se iriam desfolhando»

Wednesday, December 19, 2007

O Tebeosblog de Manuel Barrero renasceu

Para quem se interessa por noticias, estudos sobre Bd e cartoon iberoamericano, não se pode alhear do Trabalho de Manuel Barrero. O seu site e blog tinham desaparecido em Junho de 2006, mas ele regressous. Para quem se interessa por estas coisas aqui estão os endereços. Bem vindo Manuel.
http://tebeosfera.blogspot.com/
http://www.tebeosfera.com/

Monday, December 17, 2007

HISTÓRIA DA CARICATURA EM PORTUGAL (parte 8)

D. FERNANDO de SAX-Coburgo

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Aqui abrimos um parêntesis na observação do percurso de Nogueria da Silva para falarmos de um artista, que apesar de não ser português, não ser um humorista da imprensa, não deixou de influenciar esta arte em Portugal. O Rei-consorte D. Fernando de Sax-Coburgo. Pela morte da Rainha, em 1853 o país passa a ser governado por D. Fernando, durante a menoridade do príncipe D.Pedro, ou seja até 1855.
Se as figuras reais de D.Maria e D. Fernando foram vitimas das primeiras caricaturas soltas, neste fase jornalística serão em parte poupadas, para toda a razia satírica cair sobre os Cabrais e demais governantes. Além disso o Rei consorte era ele próprio um admirador e criador caricatural. Rocha Martins no referido texto sobre a Caricatura em Portugal (in Serões) deixa-nos o seu testemunho sobre esta figura régia:
«Um rei caricaturista
Um poder executivo chuchado pelo moderador
A aurora d'uma arte nova»
«Emquanto atacavam os seus ministros com essas satyricas figuras, o rei D. Fernando, artista precioso, principe germanico que trazia no seu lápis evocações de gnomos da sua Allemanha e diatribes aquecidas na vida peninsular, dedicava-se tambem á caricatura que fazia voga, inofensiva, graciosa, leve, mais d'apontamento que de troça, com o seu quê de discreto de risada diplomatica.»
«Em 1840, quando o pintavam como um nabo fardado, elle entretinha-se a tracejar na beira d'uma phantasia allemã, com as suas eternas figurinhas gnomicas, episódios margeantes na folha onde a composição resahe : e são trechos de corrida de touros a que assistiu e de que talvez se recordava com saudade emquanto ia desenhando as figuras do seu quadrinho. A lettra do rei marca os episodios minusculos, indica o que representam vendo-se então, depois d'uns cavalleiros que vao farpeando, toda a nota comica d'uma tourada no seu intermedio de gargalhada, com uns pretinhos da Guiné desnalgados e de pennas na cabeça correndo para os touros emquanto, já n'uma phanthasia, prepassam no meio d'elles anões bem allemães puxados por cysnes. N'outra, que talvez seja recordação d' alguma festa palaciana ou de S. Carlos, põe um homem cantando com largos gestos e um pianista de longas farripas, corcovado sobre o instrumento n’u ma intensa nota de verdade logo desmanchada por ter mettido tudo isso entre animaes fabulosos que a sua phanthasia germanica se comprasia em collocar nas cousas mais positivas.»
«Em 1836 caricaturava dois typos com a seguinte legenda : Il vecchio Cappuzi e l'amico Pitichenacaio. Onde a caricatura, poérm, se torna franca, sem receios, feita sem duvida n'uma hora folgazã pelo soberano é n'um trabalho curioso intitulado : 0 poder executivo do Pelouro da Limpeza.»
«É a carroça do lixo para a qual se atiram gatos. Se despejam caixotes ao som da campainha que o homem agita, n’uma nota viva de sátyra que torna realmente engraçado esse poder executivo do pelouro da limpeza todo achimcalhado por uns traços de lapis attico do Poder Moderador.»
Nascido em Viena d’Austria (1816) veio para Portugal para se casar com D.Maria II, e seria então satirizado como o Zé Nabo, mas em breve ganharia a admiração dos súbditos, pelas suas características assim descritas por Ramalho Ortigão: «Consomado camarada diletante, erudíssimo crítico, jovial conversador, alegre camarada de todos os amigos, ele fazia consistir uma das primeiras felicidades da sua existência no prazer de se consagrar aos que estimava com o bonhomia mais tocante, repartindo com eles as suas alegrias d’arte /…/ fazendo-lhes a história das suas gravuras e das suas faianças.»
Protector das artes, introdutor do gosto romântico, criador de pequenas obras em gravura, cerâmica… raiando o caricatural e o satírico pela forma onírica e irreverente nestes dois géneros criativos, ele era um rei amado e como tal respeitado, e curiosamente pouco caricaturado.
O humor não o criticou, amou-o acompanhando-o na vida e na morte, como o refere Raphael na nota necrológica nos Pontos nos ii de 17/12/1885: «enquanto a Corte, na sua maioria indiferentemente, vai trajar pela memória do rei o lucto exterior a que a etiqueta obriga, nós trajaremos, sinceramente, pela memória do artista, o crepe que não se vê porque só a alma o veste e o sentimento o determina».

Sunday, December 16, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 7)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

NOGUEIRA DA SILVA- 1

Esta é uma história que nos volta a 1848/49. O elo de ligação de Manuel Maria/Revista Popular, para os novos jornais de humor será Nogueira da Silva. Como refere Caetano Alberto em “O Occidente” de Março de 1885.(pág. 67) «Nogueira da Silva póde ser considerado um dos fundadores da gravura em madeira, no nosso pais, porque contemporâneo de Manuel Maria Bordalo Pinheiro e de José Maria Baptista Coelho os dois que primeiro cultivaram em Portugal a gravura em madeira, é certo que Nogueira da Silva é que lhe imprimiu o maior impulso e a fez progredir e aperfeiçoar, pondo ao serviço d’ella o seu bello talento e a sua rara aptidão.»
Francisco Augusto Nogueira da Silva nasceu em Lisboa a 26 de Setembro de 1830, e viria a falecer a 13 de Março de 1868. Pelo meio ficou uma obra de registo, tanto como gravador, teórico, professor... e fundamentalmente como humorista, sendo o primeiro de que se conhece identidade e biografia a merecer esse nome.
Ele próprio nos deixaria uma resenha biográfica, precisamente no ano da sua morte (in Panorama nº 1 de 1868 pág. 1). «Sou eu um indivíduo pouco apto para a escrita, assim como para tudo. A comadre que me recebeu em seus braços quando nasci devia por força ser a perguiça, ou, pelo menos, chamar-se Perguiça, porque os nomes também influem na indole das pessoas. Depois falta-me a circunstância mais essencial para os artigos proprios d’estas estampas, ou d’estes assumptos, e , mui principalmente do genero de taes jornaes.»
«Antes de tudo é necessário ser erudito, mui erudito, o que equivale a dizer que é preciso ser o mais massador possível. Em seguida ter de usar de um estilo simples; quer dizer pouco salgado: estilo de dieta, que é para não fatigar esse admirável e mysterioso estomago da cabeça, chamado cerebro, do leitor, que tem de degerir ums descripção, que poderia ser quatro vezes menos minuciosa, menos austera e menos grave.»
«Ora eu nunca tive peito bastante amplo para acomodar o espesso manto de pó em que as bibliotecas jazem envoltas. Enquanto a sal, é matéria que em mim abunda; não d’aquele que faz rir, nem do que faz chorar, como o da maior parte dos que temperam essa caldivana de artigos e folhetins que todos os dias nos dão a tragar; mas de sal que provoca caretas mais ou menos amenas: nem sal francês, nem sal português que azeda um pouco a lingua dos que precisavam ter sempre a boca cheia de pimenta»
Júlio Cesar Machado (no Diário de Notícias de 4/11/1875) descreve-o como um «homem de impreemeável seriedade, nariz arrebitado, testa pouco significativa, atitude inteiriça: era feio, enfim, parecia uma de suas próprias composições a andar pelo seu pé; foi homem de merecimento, applicado sempre em adquirir conhecimentos novos e aclarar os que já tinha…»

Wednesday, December 12, 2007

O BOBO - o humor como contrapoder

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Estando eu agora em cena no Teatro de São Carlos com a ópera Rigoleto, historia do Bobo do Duque de Mantua. resolvi recuperar este texto que fiz para o MouraBd sobre o Bobo e sua arte de humor.
Porque no te callas!!!


INTRODUÇÃO

/…/ “No Meio do silêncio tremendo do padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga, e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era o truão. /…/ O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio.
E ele ria; ria contínuo! Era rir diabólico o do bobo…”

(“O Bobo” de Alexandre Herculano, pág, 54, Ed. Ulisseia)


O Romantismo, corrente estético-filosófica do séc. XIX que ainda hoje perdura como sombra de muitas correntes do pensamento contemporâneo, foi o grande obreiro de diversos mitos, de efabulações do passado. Um dos períodos que mais sofreu distorções subjectivas, porque ainda mal estudado na época, foi a Idade Média, a qual ganhou um cariz de mistério, de tenebras após o esplendor do Império Romano, e anterior ao Renascimento do re-esplendor da Sociedade Ocidental Moderna.
Dentro da fauna dessa Idade Média mistificada em tramas romântico-trágicas, vamos encontrar o Bobo, esse ser diabólico, detentor do riso, e da razão; detentor da justiça, e da maledicência… Tal como fizeram com o Palhaço, ao Bobo foi-lhe embutido o ferrete da tragicomédia. O Homem que faz rir os outros carregando o peso da tragédia pessoal, na deformidade; a tragédia familiar no aviltamento social. Ele é apresentado como a máscara do riso que tapa a tragédia do homem solitário, vilipendiado, desprezado pelos cortesãos que o temem e adoram. Ele é a memória do eco das gargalhadas que ressoam nas abóbadas dos Castelos, é a imagem do riso, do burlesco joco-sério que animava as residências, os Palácios dos Senhores Feudais, dos Reis, dos Nobres mais importantes.
Essa imagem romântica monta a máscara da comédia por cima da tragédia, como se a essência do Homem fosse esse Fado de misérias do quotidiano, da luta da sobrevivência entre seus pares. Uma imagem, uma filosofia que é conveniente ao Poder, já que torna o Homem mais submisso à natureza, mais derrotado e enfraquecido, um instrumento de submissão mais eficaz do que a ideia da vida como uma comédia social, matizada pelas tragédias momentâneas, pelas tragédias individuais, de um ou outro momento. A felicidade, para bem dos políticos, não deve ser uma constante, antes uma recompensa oferecida pelo sistema, pelo poder, a quem vive dentro da normalidade, dentro das conveniências.
Todo o animal tem de lutar pela sobrevivência, para não ser devorado na cadeia alimentar do planeta, contudo a maioria fá-lo de forma comunitária, em bando, em alcateia, em manada… sempre no equilíbrio ecológico do sistema. O Homem, apesar de estar organizado em comunidade em relação aos inimigos externos, tem de lutar pela sobrevivência a nível individual, não apenas para o alimento, mas também na cadeia social. Claro que isso também acontece noutras comunidades animais, porém no mundo humano não está apenas em causa a questão do macho dominante, mas também o maquiavelismo social, onde o tal jogo de tragédia/comédia é se suma importância.
Qual o papel do Bobo dentro desta tragédia-Comédia?

O RISO

Como já se escreveu milhentas vezes, ninguém sabe quando nasceu o primeiro sorriso, a primeira gargalhada, a primeira comicidade intencional. Uns dizem que surgiu logo a seguir ao primeiro vagido da criança. Aqui surgem as questões teológicas sobre quem aparece primeiro: o ovo ou a galinha, mas como não estamos aqui para fomentar a discórdia, esqueçamos essas discussões. Talvez tenha surgido quando o Homem se olhou no reflexo e tomou consciência da sua imagem, do seu Ser com todos os defeitos, vícios e virtudes. Nasceu com a primeira descarga de inteligência que cruzou o cérebro humano.
O humor é um dos graus superiores da inteligência. Como tal, não é facilmente acessível a todo o ser humano, já que, para o dominar, necessita – para além dos neurónios despertos – de uma cultura, de uma educação de comunicação democrática, de saber olhar e pensar o indivíduo e a sociedade com tolerância. É não só preciso ter, como saber usar o humor. Por isso, consoante as capacidades individuais, há tantos graus de comicidade, de forma de usar o riso, de usar essa filosofia profunda de irreverência.
Nem todo o indivíduo tem o dom, a arte de desvendar o lado cómico das coisas, assim como nem todos têm a sabedoria de se divertir, tomando consciência, com essa visão clarividente, da realidade grotesca do dia a dia. O mundo divide-se entre os que fazem e os que usufruem. Entre os que fazem, há aqueles que têm maior ou menor arte criativa, e entre os que usufruem há os que se divertem a rir, sorrir ou chorar, e os que se divertem a bater nos outros.
Como tudo o que é humano é complexo, devo alertar também para os diferentes níveis de “homo risibilis”, ou seja: podemos encontrar os indivíduos divertidos, aqueles que estão sempre bem dispostos, sempre com uma palavra amável, um dito espirituoso, que alegram o ambiente, mas que não são verdadeiramente uns humoristas; há os indivíduos que são magníficos contadores de anedotas, uns com maiores dons de comediantes que outros, mas que, quando resolvem animar o grupo, são magníficos entretainers, contudo também não são cómicos criadores, já que apenas repetem o que outros criaram; há os indivíduos tristes, macambúzios, que nos surpreendem de tempos a tempos com uma farpa, uma ironia que nos leva a uma boa gargalhada fruto de um efeito cómico inesperado, espontâneo como um relâmpago; há os indivíduos que, sendo uns tristes ou uns alegres, se dedicam a olhar a vida pelo prisma da irreverência e criam cenas cómicas, textos, desenhos, ideias… são os Humoristas criativos.
Analisando o lado criativo, podemos sintetizar a questão da comicidade em dois pontos cruciais, ou seja: na visão e no tacto. Bem, não era isso que eu queria escrever, ou queria dizer, mas seria melhor escrever na visão e na lógica sequencial de pensamento. O Homem revê, desracionaliza, e reconstrói pelo tacto? Já são três pontos e não dois. Isto é como as gargalhadas, os pontos analiticos são contagiosas e crescem sem darmos por isso!!!!
Cada animal tem uma visão própria do mundo. A visão da mosca é diferente da do cavalo, do gato diferente da do peixe, o Bin Laden vê diferente de Bush… Mesmo entre os homens, cada um tem perspectivas diferentes, apesar de próximas fisiologicamente. A visão do cómico é muito mais incisiva da realidade, conseguindo despir o dia-a-dia das máscaras de hipocrisia, de falsidade. A sua visão desconstroi os cenários imaginários, para nos confrontar com a realidade, através da deformação, da incongruência, do contraste. Ele consegue transformar uma queda num acto de ballet; uma demagogia política num poema romântico; uma traição numa declaração de amor…
O segundo ponto está radicado na lógica clássica do pensamento humano, que o cómico consegue desconstruir criando novas pistas de raciocínio, criando, pelo absurdo, pela deformação, pelo contraste, pela incongruência, novas lógicas que nos levam à realidade pelo riso, pela gargalhada, pela lágrima sentida cheia de humor. Esta manifestação física resulta do prazer ao conseguir deslindar a incongruência do raciocínio, do acto.
Afinal voltei a enganar-me, não são apenas dois pontos cruciais, há que acrescentar-lhes os mecanismos da deformação, da incongruência, do contraste jogados filosoficamente com a visão e o pensamento que nos levam ao cómico, ao humor. Este depende também da pitada de loucura divina de cada criador, para equilibrar os vários componentes da receita, e assim criar algo mais profundo, ou apenas divertido.
Ser cómico é fazer rir os outros. Mesmo não sabendo nada destas teorias, mesmo não sabendo como se faz, fazendo apenas. Assim, sempre houve homens sérios (os cómicos), e os homens que lhes devem a sobrevivência, já que eles são os magos, são os curandeiros da alma humana.
O riso é, com um dia escreveu Juca Chaves, “a ginástica da inteligência”, porque não só constrói a descontrução de lógicas de raciocínios, como faz aeróbica de uma série de músculos faciais e corporais, trabalhando o sistema nervoso central, o sistema cardiovascular, o sistema respiratório, os sistemas imunológico e endócrino… libertando uma série de substâncias químicas, como a dopomina, a serotonina e a adrenalina. E, associadas a um conjunto de reacções electromagnéticas, redundam numa função de anti-stress, de descompressão física e mental, de reforço imunológico do corpo humano.
Já dizia o filósofo grego Epicetus, “não são os eventos do mundo que são o problema, mas a nossa forma de olhar para eles”. Esse olhar torna-se mais turbo quanto maiores são as responsabilidades no grupo, necessitando de uma arma de focalização da realidade, não política, antes racionalista, razão pela qual vamos descobrir, mesmo entre os ditos povos bárbaros, a exploração, pelo poder, desse olhar clarificador do riso, incentivando certas formas de cómico social.
O riso é uma arma que pode ser assassina, muito potente, que tem o dom de destruir e, paradoxalmente, de fazer renascer a vida. Toda a gargalhada é um assassínio momentâneo de algo, devendo o criador saber dar uma nova oportunidade, fazendo reerguer o destruído das cinzas, qual Fénix renascida. Sendo a gargalhada tão poderosa e ao mesmo tempo tão irreverente, difícil de controlar, o poder preferiu silenciar o criador, individualizando-o num mundo à parte de qualquer sociedade civilizada.
Sendo a demência algo que o Homem nunca soube justificar e controlar, a solução mais fácil, foi transformar a loucura como a mãe suprema de todas as desculpas, e o riso foi internado nesse sanatório, donde só deve sair bem medicado, manietado pela camisa de sete varas do poder político.

A HISTÓRIA

A história faz-se com as epopeias, com as tragédias, e se é fácil encontrar registos das grandes batalhas, dos movimentos dos povos, dos guerreiros mais famosos, seus líderes, suas tragédias épicas, raros são os registos sobre o quotidiano dos bastidores desses grande eventos, dos momentos de descontracção, dos fait-divers do dia-a-dia onde a comicidade aparece sempre.
Se foi nas grandes batalhas, nas traições aparatosas, nas grandes migrações que os historiadores fundamentaram a evolução dos povos, estes aparatos não aconteciam se não houve massas anónimas por detrás, não houvesse milhares de acções, gestos, palavras esquecidas pela efemeridade do tempo. O grande motor da história é o quotidiano ignorado de milhares de piões.
Nesse quotidiano, o riso esteve sempre presente, pelo menos desde que o Homem tomou consciência do poder dele na sua vida. Os Gregos usaram o termo Gelao para designar o riso, o qual significava “iluminar”; o riso ilumina a face, ilumina o mundo.
Com esse facto, houve uns poucos, mais dotados de espírito irreverente que assumiram para si o papel de divertirem os seus pares pelo riso, enquanto que outros optaram por usar essa visão de crítica filosófica para pensarem na existência humana. De imediato se dividem as formas de estar na sociedade, com ou sem riso, com irreverência filosófica e sem irreverência e sem filosofia. Os que se evidenciaram por essa irreverência ou foram integrados na sociedade, subjugados ao poder, ou simplesmente foram aniquilados como aberrações, como deformações do pensamento normal, como loucos.
Não foi apenas o indivíduo comum, mas também o poder, quem rapidamente tomou consciência da importância e do perigo deste espírito na orgânica social, impondo de imediato regras de conduta, de “ética”, para o controlar.
A forma mais comum do controlo dessas irreverências, da loucura cómica, foi a de sacralizá-la em manifestações específicas, associando-a, ou “prendendo-a” em Festas Populares, ligadas aos cultos da mãe terra, do universo. Assim canalizam toda a irreverência, toda a revolta, para as comemorações das passagens dos ciclos da natureza, incrementando a irreverência, o sarcasmo, a crítica, esvaziando a agressividade que poderia criar rebelião. Fundamentalmente ligadas aos Solstícios e Equinócios, há momentos de inversão das regras, de alteração momentânea dos status sociais e exageros controlados pelo calendário, que de imediato repõe a normalidade do universo. Para que essa catarse seja mais abrangente, e não se restrinja a quem tem fácil adesão ao cómico, o poder incentiva o uso de drogas nesses momentos, como o vinho e outras bebidas fermentadas, as quais facilitam a libertação do corpo, provocando a fácil comunicação com os deuses e, posteriormente, a ressaca para os recordar do seu real lugar na sociedade, na normalidade. Há muitos exemplos desses momentos na história de todas as civilizações, e que hoje na sociedade contemporânea ainda sobrevivem discretamente, como o Carnaval, o São João (Festas Populares), ou, esvaziado do conteúdo inicial, o Natal.
Para a evolução histórica da comicidade no ocidente europeu, os registos levam-nos à Grécia antiga, leva-nos ao encontro do “Cosmos”. Este é o nome de grupos de camponeses que percorriam as aldeias celebrando “Dionísios”, onde o vinho jorrava a bel-prazer, aproveitando o cortejo folião para lançarem farpas, sarcasmos à sociedade, onde criavam pequenas dramaturgias cómicas do dia-a-dia, dos seus medos, duas preocupações e ambições. Também na Grécia antiga vamos encontrar as “Falofórias” em que o mundo venéreo tinha maior expressão como irreverência. O sexo, o álcool, a exuberância corporal estarão associadas ao riso nesta fase em que prevalece o dito humor de baixo-ventre, ou seja: com o grotesco, o burlesco da crítica a radicar-se mais numa linha física do que mental.
Nestas comemorações orgíacas, misturavam-se o espírito irreverente licencioso com o espírito libertado pelos vapores do vinho, condimentados no grotesco cómico. É nesta raiz popular que surgem as representações dos Mimos, primeiros “profissionais” da comicidade, que surge o Teatro de Comédia. O teatro falado, ou apenas gestualizado, irá desenvolver-se numa estrutura paralela ao riso de que estamos a falar, que é um riso mais popular, mais uma voz do dia-a-dia. A Comédia vai-se estruturar pela palavra escrita e pela representação em espaços cénicos, com maior controle do poder.
Nesse mundo dramatúrgico, a tragédia, como exaltamento do sofrimento dos heróis perdedores (já que acaba sempre mal), como engrandecimento das tentativas (falhadas, caso contrário não era trágico) do desejo humano, será rainha. A Comédia, por seu lado, como sublinha os ridículos das pretensões humanas, como satiriza os vícios, mas premiando no final os bons, acabou por viver sempre como a “bastarda” dos dramaturgos.
Assim sendo, é naqueles rituais populares de forma grotesca, repleta de sarcasmos, críticas, comicidades, que vamos continuar à procura dos nossos heróis, os truões, os “homo cómicus”. Não são actores de teatro, são, antes, pensadores, filiados na irreverência do pensamento e da língua. Personagens que se evidenciam na sociedade pela sua visão crítica, ao mesmo tempo construtiva, pela comicidade de suas intervenções. São estes indivíduos, possíveis instigadores da rebelião popular, que o Poder vai requisitar para confidente, conselheiro, entreteiner do “Senhor”. São a “voz do povo” no meio da hipócrita linguagem cortesã, e são quem faz rir o Poder. É um papel muito importante, como o do curandeiro ou do sumo-sacerdote, vigiando cada um, o seu campo específico, a pessoa do rei: a mente, o corpo e a alma. Destes não reza o a história os seus nomes, excepto o de um ou outro que foi protagonista de alguma tragédia.
Mas que ele está lá, está. E um ou outro cronista foi deixando referências da sua presença. No antigo Egipto vamos encontrar a existência de uma deusa do cómico, Bess, para além de uma série de hieróglifos de âmbito satírico, criticando o poder (esta veia de crítica cómica prosseguirá nas cerâmicas, frescos da diversas civilizações que se seguirão). Além destes registos directos, temos a referência da existência de um indivíduo no circulo da corte que tinha como função divertir o Faraó. Seria, pois, a génese do truão, da personagem que na Idade Média ficaria conhecida por Bobo. No caso do Rei Salomão, sabemos mesmo o nome dessa personagem, Marcoulf, um confidente, um conselheiro, um mago cómico que zelava pela saúde mental do Rei.
Nas terras a Oriente, também existia essa personagem nas cortes do Império do Meio, e o grande conquistador Tarmerlão tinha ao seu serviço o celebre “bobo” Khoja (também conhecido por Nasr-Ed-Din ou Si-Djoha).
Muitos outros houve nas mais diversas cortes por esse mundo fora, e em todos os continentes. No sistema republicano da Grécia, o Teatro de Comédia irá ocupar essa necessidade humana de usar o riso para sobrevivência do espírito nesta vida que nos querem impor sempre como uma Tragédia.
Em Roma, onde a Comédia, os Mimos, irão manter a mesma função, encontramos novos registos da existência de homens burlescos ao lado dos imperadores, os quais usavam a irreverência para manter os pretendentes no seu posto. Quando os Generais Romanos regressavam das suas conquistas, no cortejo triunfal ia, a seu lado, um escravo a segurar-lhe a coroa de louros e a sussurrar-lhe que apesar do triunfo ele não passava de um ser humano, e portanto frágil, ao mesmo tempo que recebia insultos da plebe. Como herói, devia saber aceitar qualquer sarcasmo, vindos dos seres mais baixos do escalão humano, já que, divino, só o Imperador se podia considerar.
Para os Romanos, nada ficará a salvo da sátira, da irreverência, seja na escrita, na representação ou na expressão máxima do seu espectáculo, o Circo. Aqui, a morte era o ponto de êxtase; mas, como contraponto, e apesar de o esquecerem nos livros de história, ou nos filmes épicos, o cómico também conquistou aqui o seu lugar, com gladiadores cómicos que não só faziam malabarismos circenses, parodiavam combates, o quotidiano dos cidadãos, como lançavam farpas às intrigas palacianas, ao imperador. Estes cómicos, muitos deles escravos, não viviam só no Circo, mas também na casa dos Senhores, dos Imperadores.
Contudo, pelo que sabemos da história, não resultou a terapêutica ao nível da saúde mental dos imperadores, que entraram numa espiral de assassínios, de traições, de loucura, criando um ambiente de terror, de medo e decadência.
Aliando esse medo ao lado negro da humanidade, coadjuvado pela incompreensão da génese dos seres grotescos, disformes, desenvolveu-se então a ideia de que os loucos (com suas sentenças directas e cruas), os anões, os corcundas (que não suscitavam inveja, antes repulsa) eram portadores de imunidade à malevolência aos maus-olhados. A união entre estas superstições, e a necessidade do riso como antídoto social, levou a que essas personagens fossem amalgamadas no mesmo projecto. O Truão passa a ser não só o que trata a saúde mental do poder, da sociedade, como passa a ser um amuleto contra os maus-olhados, contra a malevolência. É a maledicência que protege da malevolência !!!!
Com a decadência do Império Romano, vão surgir várias ondas de invasões de certos povos, considerados como bárbaros. O seu barbarismo consistia em serem diferentes. Mas havia algo que era comum, pois vamos encontrar em alguns registos a existência de truões, de personagens cómicos, ao lado dos Chefes. Até o famoso Átila tinha o seu apoio psicológico no cómico.

O BOBO

A imagem que nos foi incutida deste período de invasões, de requalificação territorial, é a das trevas, de confusão, doença e morte. As estradas bem concebidas, as cidades romanas limpas de pedra e geometricamente delineadas, as estruturas burocráticas bem organizadas… surgem em confronto com uma anarquia organizativa, um povoamento anárquico, uma cidade escura, pouco limpa, onde as sombras nos transmitem o medo, a superstição, as trevas do mal a rondar.
É no meio desta cenografia sombria que o Bobo vai ganhar maior protagonismo. Como verificámos, esta personagem, com outros nomes, mas estruturalmente com as mesmas funções, existe desde longa data, mas será só agora que os historiadores lhe irão dar importância. Porquê? Na realidade tem um papel mais importante na sociedade, ou resultou da mitificação construída pelo Romantismo oitocentista?
No caso de Portugal, como a sua fundação se verificou neste período, será aqui que todos os elementos estruturais irão ganhar relevo. Alexandre Herculano, como escritor de romances históricos, dará o seu importante contributo, não só com “O Bobo”, mas com outros livros, para mitificar este período.
Será também por esta altura que este ofício adoptará os nomes por que hoje é conhecido: Bobo, Bufão, Truão.
A designação de Bobo provém do castelhano, e no Dicionário de Língua Portuguesa define-o como pessoa que pretende divertir os outros com ditos tolos, chocarreiros, truanices, momices, esgares. Ou seja um contador de anedotas que acompanha a sua actuação com malabarismos e contorcionismos. Em relação ao Bufão, termo que provem do italiano, é apresentado mais como um fanfarrão. Em relação ao Truão, palavra de origem celta ou occitana, consoante os historiadores, é apresentado como a personagem que faz palhaçadas, que é um saltimbanco. Em todas estas definições, apenas se valoriza o aspecto exterior de diversão, ocultando o seu papel de crítico social, ou de cómico filosófico.
A Idade Média como período de transição, foi de grandes revoluções tecnológicas e sociais, foi o encontro de uma série de culturas que se entrechocaram, e que tiveram de ter tempo para se reequilibrarem. Perderam-se algumas riquezas civilizacionais e ganharam-se outras. No meio destes movimentos, destes jogos de poder, é o povo quem mais sofre, porque transmissor das culturas mais arreigadas na sociedade, nem sempre aceita facilmente as mudanças. Nessa cultura profundamente popular, está o cómico, o gosto pela diversão, mesmo que tenha de usar o medo como arma da sua defesa e de arremedo.
Um dos mais importantes confrontos verificou-se a nível religioso, já que, acima das suas convicções, há uma Igreja a tentar controlá-lo. O Império Romano já estava cristianizado, e procurou evangelizar todos os povos que vieram ocupar o seu território. Aquando da cristianização do Império já se tinha feito uma série de ajustes para sacralizar ao novo Deus uma série de crenças, de tradições do panteão romano. O mesmo acontecerá com o cruzamento com as crenças dos novos povos. Ou seja, o povo continuava a adorar as suas divindades ancestrais (pelo menos enquanto se manteve a sua memória), sob a capa do cristianismo.
O poder político perdeu a centralidade do Império, conquistando cada território a sua autonomia senhorial; em contrapartida, o poder religioso foi conseguindo impor a sua autoridade única, inquestionável, e sempre atenta às heresias, aos desmandos do seu controle.
Desde logo, o riso foi um dos principais inimigos a abater pelos senhores da Igreja, o que levaria à decadência não só da Comédia, como de todo o divertimento público. Mas o riso será mesmo uma preocupação teológica, condenada por alguns pensadores cristãos como uma ameaça, um pecado. Segundo a visão que a igreja quer impor, não estamos nesta existência para nos rirmos da vida, mas para nos penitenciarmos do pecado original, dos pecados do mundo. A tragédia é sacralizada e exaltada como ideal. Não é Deus que está por detrás do prazer (carnal ou mental, pelo qual o sexo também é pecado), mas o diabo.
A Igreja necessita do medo aos infernos, do medo do pecado para manter o rebanho unido sob seu manto de obediência. Como o riso destrói o medo, abre a porta da dúvida irreverente, é naturalmente um inimigo a abater por qualquer poder despótico. Será uma longa luta, séculos de perseguição, com batalhas ganhas por uns e por outros, mas interminável.
Nesses anos de instabilidade, onde a morte e a vida se confundem no dia-a-dia, o riso manteve-se como uma porta da sobrevivência, e a loucura conquistou um espaço importante, um espaço de redenção da realidade.
Sacralizada, ou dessacralizada, o povo continuou a comemorar a vida, os ciclos da terra, misturados com os ciclos religiosos. Comemora a razão, na irracionalidade, provoca a ordem com o exagero, o grotesco, a inversão dos sistemas, com a loucura.
A loucura, a irreverência, mesmo nestes tempos de aparente anarquia, não podiam andar à solta, tinham de estar enquadrados pelo poder, no calendário, sob vigilância. Desenvolveram-se as Danças macabras, as representações gráficas do “Mundo Invertido”, a proliferação de imagens grotescas na iconografia popular, nas catedrais, as representações dramáticas dos “Mistérios”, das “Soties”… mas são as “Festas dos Loucos” que mais me cativam, já que encarnam a inversão do mundo, mais próxima da irreverência do Bobo.
Toda a realidade é contestável, pois vivemos mo mundo das aparências, e a loucura acaba por ser uma porta que realiza a fusão do que se conhece com o que se supõe, dando à realidade uma leitura mais profunda, ou mais crua. O louco é um destruidor das aparências, é um contestatário das evidências.
Na “Festa dos Loucos”, que se realizava por altura das Saturnales (Dezembro), incentivava-se à anarquia colectiva, à loucura como libertação das tensões sociais, das cadeias que o ligam à sociedade, individualizando o indivíduo no meio do grupo, reforçando este como colectivo de indivíduos. Tudo era permitido, todo o exagero, todo o grotesco era exaltado até á coroação do REI dos Loucos, terminando a demência com a consagração do Burro na Catedral. Esse animal, pobre e na ranking mais baixo do grupo equino, mas que tinha tido o privilégio de carregar Maria e Jesus, era adornado como um belo alazão, e louvado na igreja com uma procissão de cânticos grotescos, seguidos de uma paródia sacramental, e onde os crentes se assumiam no papel de outros animais, fazendo todo o alarido de latidos, urros, miados, consoante os animais que encarnavam. Era a loucura a intervir nos elementos mais sagrados. Por isso a Igreja procurou interditar tais loucuras em 742 e, como não conseguiu, encontramos nova interdição em 1445.
A inversão do Mundo, ou as celebrações do “Mundo ao Contrário” realizou-se das mais diversas formas, mas a troca do mundo humano com o animal foi um dos favoritos, o que levará depois a Igreja a corporizar o Diabo (figura até então apenas anímica, ou com forma simplesmente humana), num retalho de animais, como a serpente, os pés e cornos de cabra… Os próprios Sabbat de feiticeiras estão ligados a esta loucura de inversão, mas isso é outra História.
O povo tinha estas festas sazonais, mas os mais doutos, como os monges ou os universitários, também exploravam este mundo de loucura. Era de dentro da própria Igreja que surgiam muitas destas manifestações grotescas, em que as Carmina Burana são um dos exemplos da criatividade monástica no cómico. Os estudantes, para além dos cortejos grotescos, desenvolviam os sermões burlescos recitados do alto da cátedra, onde nada escapava à sua sátira, em improvisos, ou em textos bem trabalhados na comicidade retórica, testemunhos que ainda hoje se podem ler. Mas é na improvisação, nas cantigas de desafio, que vamos encontrar o seguimento de tradições populares do sarcasmo como arte do riso, como sátira dramatúrgica. Foram esses encontros de improvisações cómicas nas feiras que deram origem às “soties” (de Sot – Parvo), “parvoíces” encenadas que evoluíram para as “Farças” e que irão levar ao renascimento da Comédia na passagem para o Renascimento.
Regressando ao Bobo e seu papel na corte. Ele é um dos muitos “loucos” que habitam a sociedade, só que este não está restringido pelo calendário, permanecendo salvaguardado por algumas defesas naturais, alguns artifícios que o colocam acima da raiva, da justiça das vítimas.
Não era qualquer “louco” que poderia ser Bobo. A diversão da corte não era o seu principal papel, como todos querem fazer crer. Para as festas, os senhores convidavam saltimbancos, malabaristas, jograis que andavam de feira em feira, de castelo em castelo, vivendo da protecção temporária dos senhores e transmitindo as novidades. Os Jograis eram músicos de profissão, recitadores de poesias épicas, românticas, mas também tinham no seu repertório cantigas de Escárnio e Mal Dizer. Representavam também “arremedilhos”, “Entremeses” e “momos”, ou seja: dramaturgias cómicas que se transformarão nas célebres Farsas, Autos, Diálogos, em que Gil Vicente foi mestre. Este “pai” do Teatro Português usará a mesma linguagem vernácula do Bobo, representará com a mesma dialéctica de linguagem ambígua, mas contundente. Os loucos serão personagens importantes na sua trama cómica. Os Senhores tinham muito por onde escolher para se divertirem nos grandes momentos, nos saraus.
Quem podia ascender a este posto? Além de “louco”, tinha de ter “juízo”, tinha de saber o que dizia, ser incisivo, contundente, certeiro, mas filosófico e justiceiro. Não podia ser um político de tramas palacianas, de demagogias, tinha de ser, antes, um analista político que lançava para o ar, para o rei, os pensamentos mais profundos sobre as questões.
Entre a população havia sempre uma ou outra voz de loucura que se evidenciava, e quando mostrava algum discernimento na sua anarquia, quando o Senhor lhe encontrava “Razão”, requisitava-o para seu serviço. Era pois necessário evidenciar-se e agradar aos Senhores nas suas sentenças. Este é o primeiro passo.
Dizem os historiadores que esses “Bobos” da plebe, que animam as feiras, é que são os verdadeiros Truões, só passando a Bobo, quando ao serviço de um Senhor, ou seja no grau acima na escala social do Poder do cómico.
O segundo passo reside nas suas defesas, nas suas protecções. Ao se comportar como um louco, já se salvaguarda, pois o louco é considerado irresponsável, uma voz pura sem mancha de hipocrisia que não pode ser castigada. A sua irreverência inimputável (como agora se diria) era sacralizada como amuleto contra “maus-olhados”. Se alguém era ridicularizado pelo “louco”, ficava imune à inveja e maledicência da sociedade.
Esse lado de superstição, no Bobo, era reforçado pelo seu aspecto grotesco. Ele não podia ser uma pessoa esbelta, antes algo de repugnante. Não podia ser alvo de adulação física, ou de inveja, antes alguém cuja sorte não era possível de ser cobiçada. Devia ser grotesco, feio, anão ou corcunda, “anormalidades” que a tradição associava à imunidade, ás magias negras, aos maus-olhados. Tocar-lhe, ser alvo da sua atenção, servia de amuleto, de “mascote” contra essas artes das trevas que tanto assustavam a sociedade desses tempos.
A estas deformidades, reais ou construídas (corcundas falsas, pernas desfiguradas para pareceram aleijadas…) associava-se indumentárias específicas. Ao princípio pouco se diferencia pelas vestes, mas com o tempo vai aprimorando o traje. Antes do mais, usa cores vistosas, com predominância do verde, amarelo e vermelho. Os tecidos axadrezados ou ás riscas são coroados com sapatos de guizos, e chapéus com crista de galo, ou com orelhas de burro. Estas duas orelhas, que depois proliferaram em número, são uma das últimas heranças da Festa dos Loucos e da coroação do Burro. A completar o seu figurino, e como contraponto do poder real, ele usava um cepto, também conhecido por Palheta, uma haste encimada por uma auto-caricatura de Bobo, a Folia. Outros Bobos mais modestos, ou para festas menos charmosas, usavam como cepto uma cana encimada por um balão feito com uma bexiga de porco, com o qual também faziam barulho a reforçar as suas irreverências.
A importância destas personagens pode-se avaliar na morte, já que, aquando do falecimento dos Senhores, muitos deles eram beneficiados com doações, e na sua própria morte tinham direito à sepultura em campo santo, o que não acontecia a outros comediantes, aos actores de teatro, aos saltimbancos… a quem era vedada sepultura cristã.
Muitos foram os Bobos que alegraram esta Península, seja na cultura sueva, seja nas cortes árabes, seja depois no mundo cristão. Alguns acabaram por ser eternizados na literatura, outros através da pintura, e outros apenas como referência de um nome. No caso da corte portuguesa, acabei por saber alguns nomes de que aqui deixo referência: o Conde D. Henrique trouxe da Borgonha o seu Bobo, um triste comediante que tinha dificuldade em se fazer compreender em terras estrangeiras, sendo depois substituído por D. Bibas, o herói d’“O Bobo”, livro de Alexandre Herculano. D. Sancho I teve a seu lado dois irmãos: Bonamis e Acompaniado. Reza a história que D. Fernando foi alegrado por um tal Anequim, e D. Beatriz, mulher de D. Afonso IV, teve ao ser serviço a Miguéis.
As mulheres, por vezes, serviram também de Bobas, normalmente anãs, como foi neste caso. Estas não necessitavam de indumentárias grotescas, porque já o eram, e as suas intervenções dirigiam-se mais ao círculo das damas.
D. Sebastião andava sempre acompanhado por Couto e Pêro Dias. D. Duarte divertia-se com Filipe de Brito e Joanne… Muitos outros houve que a memória esqueceu.
Personagens cómicas, divertidas, que acompanhavam o Senhor e que tinham por função tratar da mente, do espírito. Serviam de bode expiatório das fúrias, levando pancada dos Senhores e das vítimas do seu sarcasmo. Mas também serviam de confidentes nos momentos mais íntimos, assim como de espelho caricatural onde os homens reviam os seus erros.
Se Deus tinha como contraponto o Diabo, o Rei tem como contraponto o Bobo. Os opostos servem para relembrar quão ingrata pode ser a vida, se não houver discernimento na loucura geral. Lembrar que o louco vê mais longe do que aquele que se leva a sério, encandeado pelo orgulho e soberba. A humilhação do Bobo era a recordação de quão frágil é a alma humana. O bobo dá ao rei a imagem da irrealidade, numa linguagem ambígua e grotesca, para que o Rei possa gerar a realidade, visto ser ele o único com poder para o fazer.
Ninguém conhece melhor do que o Bobo as dúvidas, as hesitações, as fraquezas do Rei; ele é a sua sombra que o acompanha para todo o lado, que escuta todos os suspiros e gargalhadas, que é o espião de todas as tramas da corte e do reino. Por isso o Bobo é não só o confessor, como o psicólogo, o médico da alma e da mente. Ele deve saber como curar os maus humores, como apaziguar suas dúvidas, como alertá-lo para o que o rodeia. No meio das gargalhadas, dos pontapés, das pancadas, as suas orelhas captam todos os sussurros, todas as fofoquices e conspirações, todos os boatos, para no momento certo os lançar a público, entre brejeirices e momices, esvaziando-lhes o poder reivindicativo. O Bobo é o guardião do Senhor, desarmando as revoltas, diluindo as agressividades latentes no ar, e fazendo justiça por aqueles que não podem falar.
Ser Bobo tinha uma função tão importante que, em muitos casos, ele era educado para esse serviço. Para além da “loucura”, de saber divertir, ele tinha de saber dizer em público aquilo que apetecia ao Rei dizer, mas que não lhe era permitido pelo politicamente correcto. O Bobo tinha de saber ser politicamente incorrecto nos momentos certos, ser irreverente magoando “diabolicamente” à esquerda e à direita, sem contudo ofender o Senhor, porque caso contrário, não havia superstição que o salvasse de uma sova, ou, em caso mais grave, de ser despedido ou até decapitado.
Apesar de toda esta múltipla função de psicólogo, de sociólogo, de confessor e conselheiro, a única característica exorbitada pela História é a do cómico grosseiro, a do entreteiner da corte.
O Bobo ganhou maior protagonismo na Idade Média, mas prosseguiu sua actividade no Renascimento e na Idade Moderna, desaparecendo apenas com a queda das monarquias absolutistas. Na maior parte da Europa, subsistiu até ao séc. XVIII, havendo casos de ainda subsistir em cortes do séc. XIX.
Naturalmente que a sua agressividade verbal, a sua comicidade grotesca foi-se refinando, tornando-se menos boçal e escatológico, característica desse humor medieval. O Bobo acompanhará a evolução da arte do cómico.
Até então comicidade, mesmo filosófica, estava imbuída pela cultura do baixo-ventre, usando-se o escatológico, o licencioso, o brejeiro, o grotesco para provocar o riso, para sublinhar a ideia subliminar. Com o Renascimento, vai haver uma tentativa de inversão do mundo do cómico, que será conceptualizado no termo Humor, e onde o cómico passa a provir do Alto Ventre, o cómico da inteligência, do jogo de lógicas intelectuais. É o humor que não ridiculariza, antes desnuda, que não é sarcasmo, antes ironia. É o humor da Democracia que procura RIR COM os outros, em vez de RIR DOS outros.
Claro que o povo continuou a preferir a comicidade do baixo-ventre, mais fácil, mais imediata, mais vingativa nas lutas entre vizinhos, mais irreverente com os tabus da alta sociedade, mantendo assim o seu cordão umbilical com as festas da mãe natureza, com o louvor à fecundação do Cosmos, como continuidade da espécie. É o riso da terra.

RESUMINDO E CONCLUINDO

Foram séculos de actuação ao lado dos Senhores do Poder, mas não sabemos se foram séculos de poder na sombra. Nunca saberemos até que ponto seus conselhos, suas farpas, foram influenciadoras das decisões reais, quantas vezes foram influenciados pelas intrigas palacianas. Nunca saberemos quantas injustiças foram corrigidas pela sua intervenção e quantas vítimas sucumbiram sob a sua língua afiada. Personagem de irreverência crítica, porta-voz da loucura humana, cómico do grotesco, o que ficou na história da sua existência?
Houve Bobos cronistas que deixaram no papel a sua visão histórica do quotidiano, e houve outros que levaram cronistas a referirem algumas das suas impertinências, mas a grande maioria das suas intervenções perdeu-se no vácuo da memória, esvaziou-se na efemeridade do eco dos salões senhoriais. O que restou da sua memória foi a imagem da “pessoa que pretende divertir os outros com ditos tolos e momices” (Dic. Língua Portuguesa, Porto Editora).
A História épica, dita séria, esvaziou sempre o papel da comicidade na evolução humana, e em relação ao Bobo só o refere como essa personagem caricata que actuava de forma burlesca, para divertir a corte. Era o louco que só dizia idiotices, tal como o Truão que divertia os feirantes com suas farpas “idiotas”. O mesmo papel mantém o “tolinho da aldeia”. É essa a ideia que domina o pensamento actual.
Com o liberalismo, desapareceu essa personagem do mundo cómico. Uns dizem que o seu descendente é o Palhaço, genealogia com que não concordo. Quando muito, aquele seria descendente do Truão, ou, mais propriamente, do saltimbanco.
Então... ninguém substituiu o Bobo no seu papel social?
Nos países de Leste da Europa, aqueles que levaram as monarquias absolutistas até mais tarde, e que depois foram subjugados pela ditadura, refugiaram-se na figura iconográfica do Bobo para o simbolizar como a voz da crítica, a voz da liberdade de expressão, como a bandeira da defesa pelos direitos do Ser. Se em alguns locais o palhaço gráfico tem também esta mensagem iconográfica, nesse espaço geopolítico o Bobo é Rei e Senhor da luta pela liberdade de expressão. Em mais nenhuma outra região encontrei o Bobo com tão importante simbologia iconográfica.
Regressando ao nosso canto ocidental, quem poderia substituir o papel do Bobo? Se o encararmos como o entreteiner espirituoso, naturalmente que os stand up comedy, os comediantes, são os prosseguidores da sua actuação.
Se o encararmos como o Idiota da sociedade, que diverte os outros com suas poses, suas vestes, suas tropelias e embirrisses, então esse papel está entregue ao Jet7, à fauna que habita as revistas de coscuvilhices.
Mas, se encararmos o Bobo como a voz crítica que alerta o poder para os seus erros, que satiriza os vícios, as intrigas… então o Bobo contemporâneo é o Caricaturista, o Cartoonista, o Humorista, o Cronista irónico, o Jornalista satírico, o analista maquiavélico.
Por outro lado, se aceitarmos o Bobo como peça da engrenagem, como peça do sistema governativo, desviador das atenções dos problemas fundamentais da governação, usando essa linguagem confusa, difusa, para comunicar o vazio da mente senhorial, então os bobos da actualidade são os Políticos, os Ministros que, pela sua acção grotesca, pela ironia demagógica, desmentem a realidade, que caricaturalmente prometem o nada.
No extremo desta actuação política, se o Bobo Louco é o que subverte o mundo na inversão do Cosmos e nos obriga entrar na Barca dos Loucos ao som das Danças Macabras, então os Bobos Contemporâneos são os ditos senhores da “Guerra e Paz”, os senhores do Petróleo e da Bolsa que, de forma terrorista, dividem o mundo no grotesco do fundamentalismo.
Na realidade, não sei quem é hoje o Bobo da Corte nesta Barca de Loucos, ou mesmo se há Corte neste Mundo Invertido. Mas que necessitamos de Bobos que ecoem seu riso, irreverente e satírico, nas paredes do nosso Castelo, necessitamos! Que é obrigatório zurzir nos Senhores cegos pelo poder, e pelo capital, como uma necessidade da nossa sobrevivência, é!
Gostaria de ainda acreditar em Mouras encantadas, de acreditar que o riso comanda a vida, e que uma boa gargalhada mata todos os medos da nossa existência.

Monday, December 10, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 6)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
O Realismo
Não foi pacífica esta introdução do realismo, como o testemunha A. Ennes em 1872, na revista “Artes e Letras” (pág. 145/6): «Os Abusos do Realismo - Não seu palavra mais prodigalisada e menos definida do que o realismo. Devendo designar uma theoria de esthética, que abolisse o dogmatismo clássico e o subjectivismo romantico, caiu das espheras luminosas e serenas da arte nos armazens da moda, onde o esfarrapou a ignorância, onde a pobreza de engenho o amoldou ao seu corpo, onde o prurido de excentricidade lhe deu relevo, as formas e as proporções de escandalo artístico. Se o não desprendermos dos abusos, que d’elle teem feito a desordem e a presumpção dos espíritos, morrerá sua victima.»
«O que banalmente começou a inculcar-se como realismo na plástica, foi a cópia servil, plana, machanica das formas naturaes, e a carencia, na arte, do seu elemento subjectivo: a idéa. /…/ Perdoem-nos os nossos artistas a liberdade d’estas reflexões, que só censuram um momentaneo descaminho de alguns, que todos vão corrigindo. As copias da natureza inanimada eram proveitosas como estudos de desenho e de côr: não podiam, todavia, ser acceitas como applicação cabal de uma theoria artística.»
«/…/ Assim como se havia imposto ás faculdades artísticas a missão orgulhosa de corrigir e aformosear a natureza, e se reputará indignas de contemplação e reproducção as realidades, que se não ajustavam aos moldes convencionaes do bello; assim a reacção contra esta falsa esthetica, desvairando-se nas horas de combater, chegou a inculcar á arte como seu exclusivo objecto os aspectos da natureza que ella até então degradara, rehabilitou e consagrou o feio, o vil e o grotesco, e alcunhou de realistas as expressões de uma concepção mysanthropica do mundo physico e do mundo moral.»
«Esta curiosa aberração observa-se na literatura como na plástica, e seria facil determinar-lhe as relações proximas com os movimentos sociaes do nosso tempo. A satyra mordaz e descrita, substituindo o idýlio e a ode perennes, apagou a lus do ceo e a virtude na alma. Esfolharam-se as arvores; enxurdaram-se as águas; o esqueleto granítico da terra rompeu o humus verdejante; empardeceu o annil dos horisontes; os campos, d’antes inevitávelmente esmaltados de flores, vestiram-se de tojos; degradaram-se as formas e desmaiaram as Côres. E a arte converteu-se em caricatura da natureza, porque nada mais é a caricatura do que essa selecção e exageração, n’um todo, das suas formas e das suas phases grotescas ou feias, que constitue a essência do realismo satanisado.»
«/…/ E os pseudos-realistas, que mais aceram vistas de philosophos para devessar os reconditos do mundo moral, assimilham-se, obcecados pelo preconceito de escola, a esse maniaco celebre que repellia uma esposa bellissima, poraue só lhe via no corpo a nudez do esqueleto por baixo das formas redondas e macias; o tecido sangrento dos musculos, a rede das veias e os filamentos nervosos por baixo da cutis rosada e sedosa.»
«Ora, nem na literatura nem nas artes plásticas, uma theoria de esthética, que se define pelos caracteres que elementarm,ente esbocei, pode ser presada como phenomeno mais grave e duradoiro, que, quando muito, poderemos corresponder a um estudo social transitório e decadente. O espirito humano passa quasi sempre pelo absurdo, mas sem presistir n’elle, para chegar á verdade; e todas as revoluções, emquanto pelejam, exageram, até os desvirtuar, os principios que vem a estabelecer definitivamente. Assim como o socialismo, militante e no estado de formação incompleta, accende as communas de Paris, a arte forcejando por acabar de partir o auctoritarismo classico e por normalisar a liberdade romantica, luta, e no tumulto da luta extravia-se, resvalla oara o satanismo, e abraça-se a quantos paradoxos lhe podem servir, não de leis, que não as procura ainda, as de armas de guerra. /…/»
Na realidade a caricatura é uma arma, uma reacção estética e jornalístico ás questões sociais e políticas da época, que deriva do pensamento realista, mas que não é tão satânica como defende este teórico escandalizado. Como contraponto apresento um texto publicado no vol. XXV de o “Ocidente” (pág. 310), onde falando de Columbano nos diz que «na verdade a estupenda fôrça do Realismo, uma espécie de duro idealismo apoiado na amor á verdade e aos sentimentos humanos, um menos literário, mas mais lógico, romantismo que derrubou o Romantismo dos princípios de escola e afastou da pintura quantos Cânones convencionaes do Academismo, reformou a Arte em toda a Europa. /…/»
É nesta ambiência de implementação do Realismo, e na procura do domínio técnico das artes da gravura que se desenvolverá o desenho satírico. E nessa evolução técnica está, como já referimos, a mão de Manuel Maria Bordallo Pinheiro, como testemunha o novo mestre do desenho satírico desta década de cinquenta, Nogueira da Silva (“A Gravura em Madeira em Portugal - I” in “Panorama” nº 7 pág. 50 de 1866): «A gravura em madeira nasceu entre nós com o Panorama, e foi seu primeiro cultor Bordallo Pinheiro, artista bem conhecido pelas suas obras de esculptura e génio emprehendedor.»
«/…/ Sem mestre, nem livros da especialidade, porque não o havia então; tendo de advinhar o systema e os meios praticos pelo que, apenas, a sua intelligencia podia ler na simples observação das gravuras estrangeiras, Bordalo fez mais do que seria rasoável exigir. As suas tentativas, postoque extremamente longe das estampas do Magasin Pitoresque, sobre cujo molde se publicava o Panorama, não parecem os prelúdios de uma arte que, na presença de tão adversas circunstâncias, pôde-se dizer, apparecia entre nós, como se não existisse em parte alguma.»
«É que, á semelhança de Alberto Durer, Bordalo Pinheiro, voando nas azas do seu engenho, rompia por si só o veu que em Portugal occultava, nas trevas de uma completa ignorância, os segredos do mais difficil genero de gravura.»
«Mas este triumpho, sufficiente para glorificar o nome de um homem n’um paíz em que se soubesse o que era arte, e quaes as suas influencias nos progressos physicos, moraes e religiosos das sociedades, não bastou ao artista, que pretendia alcançar as gravuras estrangeiras no avanço em que já iam então.»
«Vendo, pela experiência, que do estudo de desenho especial dependia o aperfeiçoamento da gravura em madeira, resolveu entregar-se todo a essa particularidade, confiando nas boas disposições que tinha descoberto em Baptista Coelho, a quem tomou por discípulo e em breve habilitou para substitui-lo e auxilia-lo no patriótico empenho.»
«Pena foi, porém, que este expediente, aliás productivo, não fertilisasse tanto quanto havia rasoavelmente a esperar./…/»
(“A Gravura em Madeira em Portugal - II”, in Panorama nº 9 - 1866, pág. 68) «Em seguida ao Panorama veio a Ilustração.»
«O pensameno inicial d’esta nova publicação ilustrada era, creio eu, radicar a arte nacional e alargar-lhe a esphera até ás vastas proporções dos jornais estrangeiros do mesmo titulo.»
«Para realisar este milagre deram-se as mãos, lapis, penna, e buril, suppondo cada um que em qualquer dos outros existia o santo. Mas, infelizmente, em todos faltava a graça. O estudo e o exercício permanentes, sem os quaes não é dado ás belas-artes convencer os incredulos e abrir o reino da glória, tinham morrido á nascença. /…/»
«Os artistas que deviam realisar tão pretencioso ensaio eram ainda os mesmos do Panorama. A arte da gravura em madeira não havia, portanto, crescido, nem em aperfeiçoamento nem em cultores; teria, pelo contrário, emmagrecido, porque dormia; e o somno é para as artes que dependem, como as da gravura, de uma execução aturada, o mesmo que o reumatismo é para a gente. Entorpece-as, impossibilitando-as, conseuqnetemente, de poderem entrar, de prompto, em vida activa. /…/»
(“A Gravura em Madeira em Portugal - III, in O Panorama nº 14 - 1866 pág. 111) «No rasto luminoso que, em relação á litteratura, deixaram o Panorama e a Illustração, mais dois ou três jornaes illustrados pretenderam viver. Morreram, porém, pouco tempo depois de nascerem, no que não fizeram mal, porque eram a negação absoluta da arte, e da grammatica também. /…/ passaram, Bordalo Pinheiro a gastar os lapis, que ainda lhe restavam, em as notas provisorias das despezas domésticas, e Coelho a encortiçar os buris, para que nada lhes desse a ferrugem. Em seguida cruzaram os braços e deixaram-se dormir… para a arte.»
«Dormiram muito, e dormiriam eternamente, talvez, se o sonho, que é o inimigo mais zombeteiro dos enganados da realidade, não viesse alterar-lhes o espírito defallecido. Bordalo e Coelho sonharam… /…/ Passados poucos dias, sahia á luz o primeiro de um novo jornal illustrado, com o titulo modestissimo de “Revista Popular”.»
«Este jornal não parecia haver nascido de um longo interregno artístico. Tão desenvolvida e animada se apresentava agora a gravura em madeira, que ninguém diria ser o remédio o ocio, a somnolencia e a inércia. /…/»

Saturday, December 08, 2007

HOMENAGEM A JOÃO ABEL MANTA em 2008

Caros artistas do traço, aqui vai mais um desafio - HOMENAGEM A JOÃO ABEL MANTA

No início de 2008, o Mestre João Abel Manta comemora 0 seu octogésimo aniversário. Uma longa vida dedicada às artes, desde a arquitectura, passando pela ilustração, caricatura, cartoon até à pintura. As homenagens devem ser feitas enquanto os artistas estão vivos e com saúde.
80 anos é uma bonita idade para se comemorar, e creio que nenhum artista, principalmente ligado ás artes gráficas, põe em causa o valor, a importância da sua obra no panorama das artes do séc. XX.
Todos sabemos que o Mestre detesta homenagens e actos públicos de louvor, com palavras ocas, com hipocrisias oficiais e oficiosas. Qual pois a melhor forma de homenagear um artista irreverente? Naturalmente com irreverência, com humor. A forma mais séria de olhar a vida. Qual a melhor forma de se reconhecer a importância estética de um artista? Com o preito de outros artistas. Com o espelho reflector, respondendo à arte com arte. Perante a obra do Mestre, os artistas responderem com humildade, com o melhor da sua expressão estética, parodiando, alegorizando, caricaturando o Mestre…
A Humorgrafe (Osvaldo Macedo de Sousa) e o BDjornal (J.Machado-Dias / Clara Botelho) sonharam com uma homenagem ao grande Mestre João Abel Manta, como melhor forma de comemorar este aniversário, como melhor forma chamar a atenção para a obra genial do Mestre. O CNBDI da Amadora alia-se ao projecto oferecendo a sua sala de exposições. Esta poderá depois percorrer outros espaços. Mas, nós não somos artistas, apenas “idiotas” de iniciativas, razão pela qual necessitamos de outros cúmplices.
Vocês caricaturistas, cartoonistas, banda-desenhistas, ilustradores estão interessados em colaborar nesta homenagem?
Cada artista pode participar com uma ou duas obras (e forem bandas desenhadas não convinha que fossem muito grandes, uma, duas pranchas…) Se for uma obra digital pode ser enviada por e-mail (Jpeg, 300 dpis) para humorgrafe_oms@yahoo.com, se forem originais para Osvaldo Macedo de Sousa Av. Carolina Michaelis nº31-4ºA 2795-053 Linda-a-Velha. Naturalmente que no final todos os originais serão devolvidos com o respectivo catálogo. A data limite ideal seria 30 de Janeiro de 2008.
Aqui estão algumas fotos do artista, e reproduções de obras do Mestre para vos inspirarem.
Desde já agradecemos o vosso apoio

Thursday, December 06, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 5)

Manuel Maria Bordallo Pinheiro

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

A caricatura é um género que está entrar na moda aos poucos, e não há duvida que o Suplemento de “O Patriota” foi o grande impulsionador e motor do humor gráfico deste primeiro periodo, pela persistência e qualidade. Com o seu desaparecimento em 1852 (altura em que cremos que coincide com a morte do Cecília-Pinta-Monos de tísica) abrir-se-á uma lacuna, que só muito mais tarde será colmata com a revolução Bordaliana. Entretanto a caricatura política sobreviverá mediocremente, dando espaço ao humor gráfico de maior incidência social, num caminho de aprendizagem estética, e de democratização do Humor, deixando de rir-se DE, para procurar rir-se COM os políticos e demais Glórias caricaturáveis.
Figuras fundamentais desta transição serão Manuel Maria Bordalo Pinheiro, Nogueira da Silva e Manuel Macedo, que procurarão tirar os melhores proventos da evolução gráfica que dominava países como a França e Inglaterra. Sobre esta transição escreveu Teixeira de Carvalho, in “Arte e Vida” (nº 7 de 1905): «De todos os caricaturistas estrangeiros é Hogarth o que teve na imprensa periódica ilustrada uma representação mais larga»
«/…/ Além de Hogarth, poucos caricaturistas lograram ser reproduzidos cuidadosamente em Portugal, e o seu verdadeiro valor passou no nosso país completamente desconhcido.»
«É facil encontrar nas publicações periódicas portuguezas referência d’onde se deduz que a literatura satyrica e a caricatura franceza eram conhecidas em Portugal; não é possivel porém encontrar um trecho donde possa deduzir-se o apreço em que eram tidas.»
«/…/ É para notar também que em parte alguma se encontra na imprensa periódica portugueza referência a Daumier e á sua obra.»
«Da obra caricatural franceza, admirava-se apenas em Portugal a frivolidade elegante de Gavarni, o desenho emfuso de Cham muito reproduzido em decalques de gravadores principiantes.»
«Importada pela literatura popular, é na litteratura popular que vemos aparecer a caricatura em Portugal com as illustrações originaes da ‘Revista Popular’ e da ‘Semana’.»
«A Caricatura teve o balbuciar nos enygmas pittorescos das publicações illustradas populares.»
«Foi ali, que os desenhadores aprenderam a linguagem do calembourg.»
«Além disso os desenhistas preocupavam-se com fazer fallar aqueles desenhos simples, tornar comprehensiveis os gestos, as attitudes, as visagens, que traduziam o pensamento ou a phrase popular.»
«Assim foram levados a dar a maior intensidade de expressão no traço mais incisivo e mais simples.»
«Nesses calembourgs o desenhista podia imitar, mas nunca copiar o desenho extrangeiro que fallava outra lingoa. O desenhista fazia assim a aprendizagem da linguagem e do gesto do traço.»
«Assim gradualmente, o desenhista, achou o traço caricatural, embora ingénuo.»
«Começava também por esse tempo em Portugal, a illustração dos romances que por seu lado havia de contribuir poderosamente para o apparecimento da caricatura.»
«De todo esse movimento é figura principal Nogueira da Silva, que pelo ser espirito emprehendedor, pela sua devoção á causa popular, e pela evolução do seu espírito de caricaturista é o antecessor de Raphael Bordallo Pinheiro…»
Vamos passar um período de cerca de duas dezenas de anos, em que a sátira política na formula explosiva e panfletária se esvai numa mediocridade total (o que confirma a grande importância do Cecília/Maria Pinta Monos). Mas, como já referi não é um período morto, antes de transição, onde vão reinar os artistas gravadores, os ilustradores que se tinham desenvolvido paralelamente nas referidas publicações de instrução e entretenimento. É um período em que as questões técnicas e estéticas são fonte de preocupação dos artistas.
Esta questão estética não é apenas uma preocupação dos gráficos, mas geral no país, primeiro porque os próprios tempos assim o exigiam a nível europeu, depois porque com o apoio do rei-consorte D. Fernando as artes em Portugal passavam um momento de impulsionamento.
Um dos protegidos do rei, e que procurará ser um dos teóricos é Manuel Maria Bordalo Pinheiro, que terá grande importância, não só pela sua dinâmica organizativa, pelas tertúlias que desenvolverá em sua casa, assim como pela pródiga geração de descendentes que dará ás artes.
Natural de Lisboa, onde nasceu a 28 de Novembro de 1815, Manuel Maria Bordallo Pinheiro é a imagem mais concreta do que eram as artes em Portugal no princípio deste século. Artista, sem o ser como profissional, levaria o seu amadorismo a limites de qualidade, explorando todas as técnicas e oportunidades passíveis de criar arte. Pintor, escultor gravador, litógrafo, critico e esteta, seria discípulo de António Maria da Fonseca, do miniaturista Luís Pereira de Resende e do escultor Faliciano José Lopes. Cultivou o gosto e a arte como ecletismo.
Seguir as correntes estéticas internacionais do momento era o seu objectivo num país um tanto arredado desses movimentos de exploração dos novos mundos, da interioridade de cada um. «Hoje - afirmaria Manuel Maria em carta dirigida á Academia de Belas Artes - as escolas acabaram. Cada um faz carreira por si próprio, observando a natureza, e é preciso estudá-la e compreendê-la. Os nossos artistas hão-de forçosamente representar a sua época seguindo o movimento actual».
No seu elogio fúnebre, publicado no “Ocidente” (nº52 de 15/2/1880), este papel de dinamizador das artes é mais explicito: «…Ao seu esforço deve-se, por assim dizer, o renascimento da arte da gravura, que se achava inteiramente esquecida e desprezada.»
«Do distinto artista disse há poucos dias um biógrafo: "Há quarenta anos, quando Manuel Maria Bordallo Pinheiro fez a sua entrada no mundo artístico compunha-se unicamente dos elementos seguintes, - uma sombra sentada sobre uma ruína.”»
«“O fio da tradição tinha-se partido, a memória dos grandes nomes estava perdida. Era preciso fazer tudo. Para vencer, era necessário em primeiro lugar a têmpera dos valentes e a crença dos predestinados.»
«Bordalo Pinheiro iniciou a gravura em madeira, e o 'Panorama' saiu do caos. Principia então, a laboriosa vida do artista, manifesta-se a fecunda iniciativa que depois, secundada por outros esforços, consegue tornar a sombra numa estátua e a ruína num templo.»
Apresentado como um pioneiro, como um inovador, ele teve um papel de dinamização nas nossas artes, como "espírito tutelar” orientador de uma família das artes portuguesas; como dinamizador de correntes estéticas novas; e organizador das mais variadas actividades artísticas.
A primeira manifestação onde se evidenciou foi na gravura. Partindo da observação de escolas ou mestres, soube recriar as técnicas necessárias das artes gráficas, para relançar a ilustração jornalística numa visão mais estética:
Recriou uma arte, difundindo a ilustração, e tentou fundar uma escola. Discípulos teve, as obras foram aparecendo no “Panorama”, na “Ilustração”, na “Revista Popular”, nas “Artes e Letras”, no “Ocidente”...
A nível estético acamaradou com os românticos, numa visão historicista ou pitoresca. A sua formação de miniaturista facilitou-lhe a exploração do pormenor, de pequenos quadros de género, pinturas de costumes, para além de quadros histórico-anedóticos.
Admirado por D. Fernando Sax-Coburgo e pelo duque de Palmela, viajou com mecenato do último, por Madrid, Paris e Londres, num estudo que acentuou a sua tendência para o género flamengo, onde o rigor na observação, o pormenor da realidade, o apresentam como antecessor do realismo, uma estética de vanguarda na época.
O realismo aparece aqui não como filosofia estético-social, mas como fruto de uma linha romântica no gosto do costumbrismo, das cenas populares que, vistas pela “verdade simples”, nos apresentam o anedótico como grotesco e por vezes caricatural.
Manuel Maria, sem ser um caricaturista ou um humorista, é um dinamizador (pela sua actividade de gravador e de crítico, pela constituição de uma Sociedade Promotora de artes...) da gravura que impulsionará a caricatura; do realismo como evolução estética da ilustração humorística. Foi portanto o primeiro espírito esclarecido a abrir as portas ás artes de mass-média e ao humorismo de expressão estética.
Morreu em 1880.

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