Sunday, December 03, 2017
Rodrigo de Matos
Rodrigo de Matos é um
dos cinco cartoonistas do território no “Barcelona X Macao Art of
Illustration”. Para o criador de crónicas ilustradas, rir da tragédia é
importante. O cartoon é fundamental enquanto alerta para os problemas da
actualidade
Tem formação em jornalismo, área em que
trabalhou, mas está agora exclusivamente dedicado ao cartoon e à ilustração.
Como é que esta passagem aconteceu?
É preciso perceber que não sou um
ilustrador puro. Sou um cartoonista editorial. O cartoon editorial, ao
contrário do que muita gente pensa, não é um tipo de ilustração. É um trabalho
diferente que usa outra linguagem. A ilustração ocupa, numa publicação, um
lugar especifico e que é, como o próprio nome indica, o de ilustrar e embelezar
textos. Já o cartoon editorial é mais do que isso: é uma espécie de crónica de
opinião, escrita numa linguagem muito própria. A minha formação em jornalismo,
bem como a experiência que tive depois da formação enquanto repórter, foram
muito importantes. É por isso que posso dizer que tenho um conhecimento,
teórico e prático, de como é produzida a informação. Penso que sei filtrar
melhor o que são os acontecimentos da actualidade, o que está por detrás de
determinadas situações e as suas implicações. Isso também é uma parte fundamental
do meu trabalho enquanto cartoonista. O meu cartoon é, antes de mais, um
trabalho de selecção do que é importante na actualidade e do que tem potencial
humorístico também. Além disso, tenho de acrescentar a ilustração propriamente
dita. Em suma, o meu trabalho implica o trabalho jornalístico e editorial em
que é seleccionado o que é importante e em que analiso as notícias, tenho o
trabalho de criar uma piada à volta disso e depois o de conseguir transmitir a
ideia com a linguagem da informação.
Acabou por fazer um curso em Madrid
específico nesta área.
Sim, na ESDP de Madrid aprende-se a
trabalhar com uma diversidade grande de meios analógicos e tradicionais da
pintura. Foi também ali que aprendi a produzir vários tipos diferentes de
ilustração para ser publicada, desde ilustração infantil a desenho realista de
cenas históricas e de animais como aqueles que vemos, por exemplo, numa
enciclopédia. Foi um curso muito importante porque foi muito prático e foi onde
aprendi o que me faltava: ter um traço mais profissional.
Já chegou ao seu traço?
Sim, penso que sim, mas noto evolução a
cada ano que passa. A graça de tudo isto também é esta evolução para que não
esteja a fazer sempre a mesma coisa. Nos últimos anos fiz um esforço de
conversão ao digital total. Já no final do curso, em Madrid, demos umas bases
de utilização do Photoshop para o tratamento de desenhos feitos em papel.
Quando comecei a trabalhar profissionalmente com cartoons, todo o meu trabalho
era feito sobre papel, com canetas e lápis: primeiro era o esboço com lápis,
depois com lápis azul e depois com uma caneta especial. Era um processo que
envolvia três folhas de papel que depois digitalizava e coloria. Actualmente,
já há uns tablets muito bons em que desenhamos sobre o ecrã e que são muito semelhantes
ao papel. A tecnologia também já evoluiu tanto que a sensibilidade destas
canetas digitais está muito próxima, se não mesmo melhor, do que as canetas
tradicionais. Esta evolução tem sido muito positiva porque vejo que o meu
trabalho não perde nada quando feito digitalmente, sendo que até pode ganhar.
Recebeu, em 2014, o Grand Prix do
Festival Press Cartoon Europe, na Bélgica. Em que é que este reconhecimento
internacional projectou os seus desenhos?
É difícil avaliar até que ponto isso
aconteceu, mas penso que terá acontecido. Um prémio desses é uma coisa que
valoriza muito qualquer currículo.
Quais são as suas referências
editoriais?
Sou, desde sempre, um grande apreciador
daquilo a que se pode chamar da escola norte-americana de cartoons. Os trabalhos
que são publicados na imprensa de referência dos Estados Unidos da América têm
uma linguagem e um humor típico que me influenciam muito.
Como é que poderia caracterizar essa
linguagem?
É um pouco redundante falar em humor
inteligente porque penso que todo o humor tem de ser inteligente. O humor
implica uma actividade cerebral que leva à compreensão da piada. Os americanos
são muito influenciados por uma escola associada à stand-up comedy de
qualidade. É um humor mordaz e sarcástico e que não explica a piada, não dá
tudo ao leitor. O que os cartoonistas americanos fazem, e que eu também procuro
fazer à minha maneira, é contar uma história dando só um pequeno momento,
aquele momento chave que é suficiente para perceber tudo o que se quer contar.
Muitas vezes os cartoons pegam em
situações trágicas da realidade. A estas situações junta o humor. Como é que
lida com esta ligação?
Ainda hoje, sempre que faço um cartoon
acerca de um determinado tema mais triste, como um ataque terrorista com
vítimas mortais, há sempre alguém que diz que o meu trabalho é de mau gosto.
Penso que é uma questão muito cultural. Ainda achamos que o riso ofende, que o
riso é uma coisa feia, proibida e má. Temos uma visão muito negativa do humor
que, penso, nos é transmitida pela nossa cultura judaico-cristã. É um erro que
pode ter tendência a ser corrigido nas próximas gerações, se o mundo evoluir
numa direcção interessante. As pessoas têm tendência em confundir o tema da
piada com o alvo da piada. Quando faço um cartoon acerca de um acontecimento
com mortes, ou sobre uma doença que está a matar crianças, o que pretendo não é
ridicularizar as vítimas, não é humilhar quem sofre. A intenção do cartoon é
chamar a atenção para o que está mal. Quanto mais grave a situação é, mais pede
um cartoon. O que se pretende, quando se faz este tipo de trabalho, é que as
pessoas se indignem com o que está mal. O cartoon aponta o dedo aos paradoxos
da condição humana. Se isso pode provocar o riso, é para que nos possamos
também rir de nós. A nossa cultura, especialmente quando se fala de morte, tem
um preconceito enorme. A morte é um grande tabu, é intocável. Não se pode falar
dela, não se pode brincar mas, na realidade, a morte faz parte da vida, é a sua
parte final. Quando um trabalho meu tem esse tipo de reparo, quando é
considerado uma coisa de mau gosto só porque aborda o tema da morte ou do
sofrimento das pessoas, procuro não me deixar perturbar. A verdade é que o meu
trabalho é sempre susceptível de críticas. Coloco-me na linha de fogo. Um cartoonista,
faça o que fizer, seja qual for o tema, vai ofender sempre alguém. Mas nem
sempre a pessoa que se sente ofendida tem razão. Cresci a ouvir que não devia
brincar com coisas sérias e nunca concordei com isso. Até hoje tenho tentado
provar o contrário: as coisas sérias são coisas com as quais devemos brincar e
que devemos abordar de todas as formas.
Que temáticas mais gosta de abordar?
Gosto precisamente das que são mais
problemáticas porque representam um desafio maior. É arranjar uma piada no
drama. Há sempre um lado irónico nas coisas. Uma situação trágica em que há
várias mortes sem razão é uma coisa muito difícil. Mas são também estas
situações que encerram em si uma ironia e um paradoxo muito grande. Estas
características estão inerentes ao actual momento da nossa civilização. Somos
tão avançados, somos capazes de realizações tecnológicas incríveis e, ao mesmo
tempo, ainda aqui andamos a matar-nos por causa de homens invisíveis.
Veio para Macau em 2009. Como é que esta
vinda para o Oriente influenciou o seu trabalho?
Macau apareceu na minha vida por acaso.
Estava em Lisboa, tinha a colaboração com o jornal Expresso e vim cá visitar um
amigo. Com a oportunidade de trabalhar aqui fiquei dividido. Acabei por optar
por ficar em Macau precisamente por achar que teria um potencial de
conhecimento maior se aqui ficasse. Pensei também em aprender a língua chinesa,
um projecto que ainda não consegui concretizar. Ao tentar perceber uma cultura
tão diferente da nossa, acabamos por ficar sempre mais ricos e por perceber
melhor o próprio ser humano.